terça-feira, 26 de junho de 2007

Abbé Pierre

A vida do fundador de Os Companheiros de Emaús ficou marcada pelo combate a favor da justiça e da fraternidade.
Figura emblemática do combate à exclusão e iniciador de Os Companheiros de Emaús, o Abbé Pierre morreu em 2007, aos 94 anos, num hospital de Paris, onde tinha sido internado na sequência de uma bronquite.
A França está de luto, “perturbada” e “tocada no coração”, como afirmou Jacques Chirac, numa declaração logo após a morte daquele que era a personalidade mais querida dos franceses há longos anos. Morreu um “gigante da misericórdia”, disse o arcebispo de Bruxelas, cardeal Godfried Danneels.
“A sua morte fez-me pior que o frio desta manhã”, queixou-se Gilles Vasseur, um sem-abrigo a viver numa tenda num bairro dos arredores de Paris, à reportagem da AFP. “Nós, os sem-abrigo, os sem-nada, estamos hoje todos órfãos.”
À direita como à esquerda, na política mas também entre os responsáveis pelas associações de apoio social e instituições religiosas, o lamento pela morte do Abbé Pierre foi unânime. Roger Etchegaray, ex-presidente do Conselho Pontifício Justiça e Paz, afirmou que o fundador de Emaús “nunca se enganou no combate, declarando guerra à miséria e desejando que os primeiros a servir fossem os mais sofredores”.
“Para lá das particularidades religiosas ou filosóficas, ele lembrava a cada um o seu dever de humanidade. Possa ele suscitar em muitas pessoas o desejo de prosseguir o seu combate pela justiça e pela fraternidade.” Conta o Abbé Pierre em Testamento que Jacques Gaillot, ele próprio marginalizado pelo Vaticano na sequência de posições polémicas, lhe perguntou um dia: “Explique-me um mistério: eu, assim que abro a boca, levo uma tareia. Você, em contrapartida, diz dez vezes mais e a mensagem passa sem problemas.” O padre respondeu que não era bispo e que lhe tinha sido dado um “instinto de insolência comedida”, que lhe permitia ver até que ponto poderia “clamar”…

“Antes de te matares…”

Certo é que clamou e fez muito. Resistente à ocupação da França pelos nazis, antigo deputado, Henri Grouès de seu nome de baptismo nasceu em 5 de Agosto de 1912 em Lyon, numa família numerosa – há mais de uma década já tinha 123 sobrinhos. Estudou com os jesuítas mas entrou aos 19 anos nos Franciscanos Capuchinhos. Já no tempo da ocupação nazi, recorda a AFP, entrou na clandestinidade em 1942, ajudando judeus e resistentes. Esteve preso em 1944 às ordens dos alemães, mas conseguiu escapar. Foi depois deputado entre 1945 e 1951.
É precisamente nesse período em que, já dedicado a apoiar mães e crianças em dificuldades, se sente levado a criar Os Companheiros de Emaús. Em Julho de 1995, numa das suas vindas a Portugal, o próprio contava que, perante um homem desesperado que queria suicidar-se, lhe dissera: “Antes de te matares, não queres ajudar-me a acabar algumas destas casas para estas mães que choram?”
Em 1954, durante um Inverno especialmente rigoroso, lançou o apelo à “insurreição da bondade”, como lhe chamou. O apelo foi renovado 40 anos mais tarde, em 1994 (e de novo em 2006, em plena Assembleia Nacional Francesa), para denunciar o “cancro da pobreza”, pedir apoio para os mais de 400 mil sem-abrigo franceses e defender o direito ao alojamento digno para todos. A sua popularidade levou-o a ser convidado há poucos anos para integrar uma candidatura ao Parlamento Europeu.
No livro Testamento, escreve no final: “Se posso transmitir uma certeza aos que vão conduzir a luta para instilar mais humanidade em tudo, será (decididamente, não posso escrever outra coisa): ‘Viver é aprender a amar.’”
Foi esse o seu lema.

“Sartre dizia : « O Inferno, são os outros! ». Estou profundamente convencido do contrário. O Inferno é estarmos desligados dos outros! Tens vivido a acreditar que te bastas a ti próprio. Então, basta-te! No lado oposto, o Paraíso é estar em comunhão ilimitada. É a alegria da partilha, da troca, banhadas pela luz.”
(Mémoires d’un croyant – 1997)

“A vida eterna não começa depois da morte. Começa agora, nesta vida, na escolha que fazemos todos os dias, de só pensarmos em nós próprios ou de partilharmos as alegrias e as tristezas dos outros. Deus não terá de nos julgar. O julgamento será este momento de luz plena onde cada um verá aquilo que fez de si próprio: um ser auto-suficiente ou um ser comungante.”
(Mémoires d’un croyant – 1997)

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