sábado, 16 de junho de 2007

Partilhar - Marie de Hennezel

Marie de Hennezel
Diálogo com a morte
Lisboa, Editorial Notícias, 2002
Excertos


Nove horas. A equipa de cuidados paliativos encontra-se na copa para beber o café matinal. Da ementa constam croissants e pãezinhos com chocolate. Foi o Dr. Clément que os trouxe. Acontece-lhe de manhã, ao sair de casa para se dirigir ao hospital, pensar nas enfermeiras. Algumas estão presentes desde as sete da manhã para acompanhar o despertar dos doentes. Ao passar pela padaria da Rua Coquillière, faz uma paragem. É certo que, quando ele chega com o seu largo sorriso e carregado daqueles pães a cheirar bem, uma lufada de calor e de bem-estar espalha-se pelo serviço.
A equipa está então reunida para uma dessas numerosas ocasiões de convívio e troca de experiências profissionais.
Há alguns anos que integro essa equipa. Fui a primeira, em França, a apresentar-me como voluntária para confortar e cuidar daqueles que vivem os seus últimos instantes.
Não sabia, ao fazer essa escolha, o quanto a proximidade do sofrimento e da morte dos outros iria ensinar-me a viver e outra maneira, mais consciente e intensamente. Não sabia que um local destinado a acolher os moribundos pode ser o inverso de uma antecâmara da morte, um lugar onde a vida se manifesta com toda a sua força. Não sabia que ali ia descobrir a minha própria humanidade, que ia, de certo modo, mergulhar no coração humano.
Atraída pelo cheiro do café a ferver e pelo ar festivo do Dr. Clément, Chantal, a enfermeira do turno da noite, decide-se a ficar mais uns momentos. Acabou o serviço, mas tem vontade de partilhar com os outros os frutos da sua noite. O serviço nocturno é uma tarefa solitária, por isso ela raramente perde a oportunidade de se juntar à equipa diurna para se sentir menos só. À sua maneira volúvel, ei-la que se põe a descrever o seu turno.
Patrícia, a jovem que entrou na véspera, tocou várias vezes a campainha sob os mais variados pretextos.
Chantal sentiu-a angustiada. Disse ter hesitado em ministrar-lhe um calmante, mas depois teve uma ideia luminosa. Pegando numa travessa, cobriu-a com um guardanapo branco e colocou-lhe em cima duas bonitas chávenas, um raminho de flores e uma vela acesa. Após ter enchido as chávenas com uma verbena a fumegar, entrou no quarto de Patrícia. Eram duas horas da madrugada: Descreve-nos o ar de surpresa e de satisfação da jovem, o ambiente de festa íntima que a sua ideia soubera criar.
Criar uma ambiência calorosa e calma em volta de um doente angustiado é, sem dúvida alguma, o melhor que podemos fazer por ele. Há muito tempo que Chantal percebeu isso. Aliás, os médicos ficam sempre muito admirados por haver tão poucos calmantes ou ansiolíticos ministrados aos doentes nas noites em que ela está de serviço. É verdade, ela prefere fazer-lhes massagens, contar-lhes histórias, ou pura e simplesmente deixá-los falar, enquanto fica calmamente instalada à cabeceira. Foi o que fez esta noite, diz-nos ela, com a Patrícia.
** **
Sentada numa das poltronas confortáveis, concedo-me este momento de solidão, em que deixo o pensamento divagar; é a minha maneira de me recompor. A súplica de Patrícia, de não morrer antes de estar preparada, faz-me pensar em Xavier, um amigo que morreu de sida há poucas semanas. Um ano antes de morrer, quando se encontrava na reanimação após uma pneumocistose aguda, ele dissera-me: «Não tenho medo de morrer, mas não queria morrer sem estar pronto.» De noite, sonhara que devia partir para o «novo mundo», a América, sem dúvida, mas não queriam dar-lhe ainda o bilhete. «Lá o terá, a seu tempo», responderam-lhe. Lembro-me de me ter maravilhado com a maneira como o seu sonho o incitava a ter confiança no tempo. Partiria «a seu tempo». Ele pedira tempo para se preparar para a morte, a vida dera-lhe um ano. Eu sei, por tê-lo encontrado várias vezes nesse ano, que, para além das questões materiais a resolver, preparar para morrer significa, na realidade, cavar o mais profundamente possível o leito da sua relação com os outros, aprender a entregar-se.
Perguntam-me com frequência que razão me levou a vir trabalhar num sítio como este, a conviver com o sofrimento e a morte. Parece-me que, desde a infância, dois impulsos me trouxeram até aqui. Um deles, mais espiritual, nasceu no meio da angústia familiar em face da morte, questão sem resposta em que medito quotidianamente e que me faz avançar. O outro é a minha curiosidade infinita em relação à alma humana, que me levou a ser psicóloga, a explorar o campo da psicanálise e, mais recentemente, o da haptonomia, ciência do contacto afectivo.
A vida ensinou-me três coisas: a primeira é que não poderei impedir nem a minha morte nem a dos meus próximos. A segunda, é que o ser humano não se reduz àquilo que vemos, ou julgamos ver. É sempre infinitamente maior, mais profundo do que os nossos estreitos julgamentos podem exprimir. E, finalmente, ele nunca disse a última palavra, estando sempre a transformar-se, a realizar-se em potência, capaz de se modificar através das crises e das provações da sua existência.
A proximidade da morte desperta, por vezes, os medos, as inseguranças antigas. Podemos entender que, ao perdermos as nossas defesas, os nossos meios de protecção, ficamos extremamente vulneráveis. Vemos, por vezes, surgir dores ou terrores que remontam à mais tenra infância. Não será o ser humano à procura dessa protecção, dessa segurança que lhe falta?
No quarto 775, Christine passa por momentos semelhantes de terror, incontroláveis e de todo imprevisíveis. Esta rapariga de apenas trinta anos, que está a morrer de um cancro generalizado no útero, fica por vezes transida de pânico. Vê no seu quarto uma multidão de serpentes que lhe assaltam a cama. Nessas alturas, salta da cama em grandes gritos. Esta cena reproduziu-se já várias vezes. O serviço fica petrificado, os doentes dos quartos vizinhos, desnorteados: que se passa?
Mau grado um tratamento adaptado a este género de alucinações, os terrores persistem, e só cedem, em geral, passado um bom bocado. Durante o resto do tempo, Christine mostra-se bastante serena, eu diria mesmo que dá, por vezes, provas de uma maturidade surpreendente, no modo como vive esta derradeira fase da sua existência. Uma maturidade em grande contraste com os seus pânicos infantis. Fala abertamente da sua morte e preocupa-se com o futuro do noivo, repetindo-lhe com frequência que deseja que ele refaça rapidamente a sua vida com outra mulher.
Esta manhã, ao chegar ao serviço, dou com Christine esgazeada, no meio do vestíbulo, a gritar a plenos pulmões, dificilmente dominada pelo Dr. Clément e por Simone, que, pegando-lhe cada um num braço, tentam impedi-la de se evadir do serviço. Porque é isso que ela quer fazer.
Vou, naturalmente, ajudá-los. Christine grita que as serpentes a perseguem, suplica que a protejam. Sem reflectir demasiado, prendo-a nos meus braços. De resto, ela pesa tão pouco que não tenho a menor dificuldade em levá-la até à saleta anexa. Aí chegando, deixo-me cair num sofá e, mantendo-a bem apertada ao peito, começo a embalá-la suavemente, cantando-lhe o nome. O Dr. Clément, após ter-se certificado de que já não precisava dele, fechou a porta, pois Christine continua a gritar com a mesma força, embora já não procure fugir. Sinto que aceita ficar sentada nos meus joelhos, penso mesmo que se sente em segurança, com os meus braços em sua volta, a protegê-la contra esse medo invisível.
Enquanto ela não pára de gritar, continuo a embalá-la ao peito, e a cantarolar o seu nome, com doçura.
Agora, deixou de gritar, mas soluça aflitivamente, com a cabeça enterrada no meu pescoço, como uma criança. Dali a pouco, com uma voz de menina pequenina, entrecortada de choro, conta-me os terrores da sua infância. A mãe dela coleccionava serpentes vivas em grandes frascos de vidro, e deixava-as sair de cada vez que Christine fazia uma asneira. Custa-me a crer em semelhante crueldade, a crer que uma mãe possa ser tão louca. Pouco importa, de resto, qual é a parte de efabulação ou de realidade! Esses medos fazem, sem qualquer dúvida, parte da infância de Christine. Não posso fazer outra coisa senão dar-lhe a entender que também existem lugares onde nos podemos sentir em segurança. Também para ela existe um espaço seguro. De momento, é este dos meus braços, daqui a pouco será noutro lugar. Que posso eu senão fazê-la experimentar esta sensação de segurança?
Agora, já não chora mais. Está a brincar com o colar de borboletas de contas azuis, enfiadas por crianças leucémicas, que trago por dentro da minha bata branca, sempre com a cabeça inclinada no meu ombro. Faço-lhe festinhas nos longos cabelos louros que lhe chegam a meio das costas.
— Se quiseres, dou-to — digo-lhe. — As borboletas não se deixam apanhar pelas serpentes. Vão proteger-te.
O meu colar vai, pois, servir de objecto transicional. O psiquiatra inglês Winnicott denomina assim o objecto que a criança às vezes guarda consigo, e que lhe permite suportar a ausência da mãe, na medida em que está investido das suas qualidades.
Antes de acompanhar ao seu quarto Christine, que recuperou a calma, digo-lhe ainda que a borboleta simboliza a alma, essa verdadeira essência do humano que escapa às leis da biologia, aquilo que eu julgo ser a parte de eternidade do homem. Christine não tem qualquer dificuldade em entender a interpretação que lhe proponho: também ela acredita na eternidade da sua alma.
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Montreal. Termina o congresso «processo de cura para além do sofrimento e da morte». O Dalai-Lama veio presidir à sessão plenária de encerramento. Estou sentada na primeira fila, ao lado de Luc Bessette. O audacioso organizador deste imenso congresso propôs-me amavelmente este lugar. Mais de mil e quinhentas pessoas vieram aqui para reflectir durante dois dias sobre as questões que colocam a doença e a morte. Pela primeira vez, um congresso científico internacional dá um lugar de destaque à contribuição das tradições orientais e às técnicas meditativas.
O sussurro esvaiu-se na imensa sala dos congressos, pois Sua Santidade o Dalai-Lama chegou ao estrado. Vemos subir pela escada lateral um jovem muito frágil, de cabeça rapada, quase diáfano. Vemos que se trata de um menino doente, apesar de se manter de pé, muito direito. Uma mulher guia-o até junto do Dalai-Lama, pronuncia algumas palavras, e vemos o santo homem inclinar-se para o menino. As duas cabeças calvas, uma bronzeada e castanha, a outra de uma brancura quase transparente, estão agora frente a frente. Há algo de infinitamente comovedor neste encontro de um velho sábio e este menino doente. Um homem, ao microfone, explica-nos que o menino sofre de leucemia e que a sua vida está em perigo, pois todos os tratamentos falharam. O maior desejo do menino era encontrar um dia o Dalai-Lama. Esse desejo foi hoje satisfeito.
O velho monge instala o menino à sua direita, na mesa de conferências, e as últimas intervenções do colóquio vão-se sucedendo ao microfone. É altura, finalmente, das perguntas a fazer pela assistência. Luc Bessette dirige-se ao menino doente e pergunta-lhe:
— Podes dizer-nos aquilo de que tens mais necessidade, neste ponto que a tua doença atingiu? Podes dizer-nos, ainda, o que significa a morte para ti?
Vemos então o menino pegar no microfone e, com uma firme autoridade interior, responder numa voz calma e prodigiosamente comedida:
— Tenho necessidade de que estejam comigo, como se eu não estivesse doente. Que se riam, que se divirtam comigo, que sejam naturais! Sei que estou na terra por um tempo limitado, para aprender alguma coisa. Quando tiver aprendido o que cá me trouxe, partirei. Mas, no meu cérebro, não consigo imaginar que a vida se acabe!
Foi assim que, nessa tarde, mil e quinhentas pessoas cultas receberam a mais bela lição de sabedoria e de simplicidade que possa existir. Uma palavra de ouro nos lábios de uma criança condenada pela medicina. Um enorme estremecimento percorreu a sala, seguido por um profundo silêncio. Em muitos olhos viam-se lágrimas. O velho monge levantou-se e inclinou-se perante o menino, como se teria inclinado perante um mestre. Colocou-lhe uma estola branca sobre os ombros e abençoou-o. Uma ovação interminável fez erguer a assistência, que não sabia dizer de outra maneira a intensa emoção que sentia.
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Embora conviva quotidianamente com a morte há vários anos, recuso-me a banalizá-la. Vivi a seu lado os momentos mais intensos da minha vida. Conheci a dor de me separar de quem amava, a impotência perante os progressos da doença, momentos de revolta em face da lenta degradação física daqueles a quem assistia, momentos de esgotamento, com a tentação de parar com tudo: mas não posso negar o sofrimento e, por vezes, o horror que rodeiam a morte. Fui testemunha de imensas solidões, senti a dor de não poder participar de certos desamparos, pois há níveis de desespero tão fundos que não podem ser partilhados.
Conjuntamente com este sofrimento, tenho, mesmo assim, a sensação de me ter enriquecido. De ter conhecido momentos de uma densidade humana incomparável, de uma profundidade que não trocaria por nada deste mundo, momentos de alegria e de doçura, por incrível que isso pareça. Sei que não fui a única a tê-los vivido.
Há alguns anos, tive este sonho: estava na cozinha de uma velha casa, em presença de um homem, que era, sem dúvida, o hospedeiro daquele lugar. O homem apontava para a parede, por cima da lareira. Nesse sítio havia um buraco. Como ele parecia insistir em que eu fosse ver de mais perto, peguei numa cadeira, subi e olhei para o interior da chaminé. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que, ao longo das paredes cobertas de uma fuligem negra e espessa, escorria algo semelhante a mel. Intrigada, estendi a mão para me certificar: era mesmo mel!
Lembro-me de que, no sonho, eu estava profundamente abalada por essa descoberta, e tinha a sensação de que precisava, absolutamente, de prevenir os outros. Como se detivesse um segredo que era urgente partilhar.
Sabia que teriam dificuldade em acreditar em mim, e que a coisa levaria o seu tempo.
Irão encontrar neste sonho várias outras interpretações óbvias, estou consciente disso, mas, na altura em que o vivi, liguei-o, de propósito, ao que ia descobrindo de dia para dia, naquela proximidade do sofrimento e da morte! Existia dor, é certo, mas também doçura, muitas vezes uma infinita ternura. Eu descobria, assim, que o espaço-tempo da morte é, para os que querem penetrar nele e ver para além do horror, uma ocasião inesquecível de intimidade.

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