terça-feira, 26 de junho de 2007

Dom Bosco

Terésio Bosco
D. Bosco
Porto, Edições Salesianas, 2002


Um rapaz. 9 anos e 2 vacas. Todos os dias, depois do almoço, pega na aguilhada e toca os animais para o vale. Na sacola leva um bom pedaço de pão branco para a merenda. Lá em baixo espera-o outro garoto da mesma idade e também guardador de vacas. Só uma diferença: este para a merenda leva um pedaço de pão negro.
Um dia, o primeiro rapaz entrega ao companheiro o seu magnífico pão branco:
— Toma lá, é teu.
— E tu?
— Prefiro o teu pão negro.
Aquele rapaz chama-se Joãozinho Bosco. O pai morreu quando tinha dois anos. A mãe, que coze o pão branco no forno e o ensina a ser generoso, chama-se Margarida.

Um sonho aos 9 anos

Uma noite, talvez aquela que se seguiu à troca do pão branco pelo pão negro, Joãozinho teve um sonho. Contá-lo-á ele mesmo algum tempo depois:

“Aos 9 anos tive um sonho, que me ficou profundamente gravado na memória por toda a vida. No sonho parecia-me estar perto de casa, num terreiro amplo, onde brincava uma chusma de garotos. Uns riam, outros blasfemavam. Ao ouvir aquelas blasfémias, caí sobre eles, tentando fazê-los calar, primeiro com boas razões, e depois ao sopapo.
Nisto, apareceu um personagem misterioso, ricamente vestido.
O seu rosto era tão brilhante que me era impossível fixá-lo. Chamou-me pelo nome e disse-me:
— Não é à pancada, mas com bons modos que deves conquistar-lhes a amizade. Começa imediatamente a falar-lhes do mal que é o pecado e do bem que é a virtude.
Confuso e atónito, respondi que era um rapaz pobre e ignorante.
De repente aqueles garotos, já transformados, juntaram-se à volta daquele personagem que lhes falava. Quase sem saber o que dizia, perguntei:
— Quem sois vós que me pedis coisas impossíveis?
— Eu sou filho d’Aquela que a tua mãe te ensinou a saudar três vezes ao dia. O meu nome pergunta-o à minha Mãe.
Naquele momento vi uma Senhora de aspecto majestoso, vestida com um manto resplandecente como o sol. Vendo-me confuso, fez-me sinal para me aproximar. Tomou-me com bondade pela mão e disse-me:
— Olha! — Olhando, verifiquei que aqueles garotos tinham desaparecido todos; e vi então uma chusma de cabritos, cães, gatos, ursos e muitos outros animais.
— Eis o campo em que deverás trabalhar. Torna-te humilde, forte e robusto: e aquilo que neste momento vês acontecer com estes animais, hás-de consegui-lo com os meus filhos.
Olhei de novo, e eis que, em vez de animais bravios, via apenas cordeiros, saltitando e balindo, em ar de festa, em volta daquele Homem e daquela Senhora.
Nisto, sempre em sonho, desatei a chorar e pedi àquela Senhora que falasse mais claro, pois eu não estava a perceber nada. Então ela colocou-me a mão sobre a cabeça e disse-me:
— A seu tempo tudo compreenderás. Ditas estas palavras, acordei com um ruído e tudo desapareceu.
Tinha a cabeça atordoada. Parecia-me sentir as mãos doridas, pelos murros que tinha dado, e a cara a escaldar com os que tinha apanhado daqueles garotos”.

Batem na janela os primeiros raios de sol e já todos lá em casa se levantaram. Joãozinho salta rapidamente da cama, diz uma breve oração e desce a correr para a cozinha, onde estão a mãe, a avó e os dois irmãos José e António. Incapaz de resistir, acaba por contar o sonho com todos os pormenores. Os irmãos dão uma forte gargalhada:
— Virás a ser pastor! — diz o José, em ar de mofa.
— Talvez um chefe de bandidos! — acrescenta o António, com ar escarninho.
A mãe, pelo contrário, fica pensativa. Fita os olhos no filho, inteligente e generoso, e exclama:
— Quem sabe se um dia não teremos aqui um sacerdote!?
A avó, por seu lado, bate impacientemente com a bengala no chão e murmura:
— Os sonhos são sonhos, e não devemos acreditar neles. Agora o importante é irmos comer.

O pequeno saltimbanco

Apesar do parecer da avó, Joãozinho volta ao sonho de vez em quando: pensa nos rapazes que blasfemavam, nos animais bravios transformados em cordeiros, e nas palavras da mãe: “Quem sabe... sacerdote...”.
Conhece já vários desses rapazes: vivem na vizinhança e nas quintas espalhadas pelo campo em redor. Alguns são bons, mas há-os também desordeiros, rudes e desbocados. Porque não começar já a captar a amizade desses rapazes?
Um dia, entra em casa com o rosto a sangrar. Andava a brincar com os companheiros à guerra, e um projéctil de madeira tinha-o atingido violentamente na cara. Margarida faz-lhe o curativo e observa preocupada;
— Qualquer dia voltas para casa sem algum dos olhos. Por que motivo andas com esses rapazes? Tu sabes que há sempre algum atravessado.
— Se é para lhe fazer a vontade, não volto para o meio deles. Mas olhe, que quando estou com eles, portam-se melhor.
Margarida suspira e deixa-o à vontade.

Espectáculo no campo

As cornetas dos saltimbancos ecoam pelas colmas em redor. É a festa do padroeiro da terra. Joãozinho é dos primeiros a chegar. Resolveu “estudar” os truques dos prestidigitadores e os segredos dos equilibristas. Paga dois soldos para poder estar na fila da frente. Volta para casa e faz experiências: caminhar na corda bamba (muitas vezes lá vai ao chão), tirar um frango vivo de uma panela a ferver...
Há que multiplicar os exercícios meses seguidos, ser constante, apesar dos trambolhões.
E numa tarde de Verão, Joãozinho anuncia aos amigos o seu primeiro espectáculo. Sobre um tapete de sacos estendidos no chão, faz prodígios de equilíbrio com latas e caçarolas de cozinha na ponta do nariz. Pede a um pequeno que abra bem a boca e tira-lhe de lá dezenas de bolinhas coloridas. Depois entra em acção a “varinha mágica”. O irmão António chega do trabalho precisamente a meio do espectáculo. Atira para o chão a enxada que trazia às costas e começa a gritar furioso:
— Cá está o palhaço! O mandrião! Eu farto-me de trabalhar, e ele aqui com palhaçadas!
Joãozinho suspende o espectáculo, mas para o recomeçar a duzentos metros dali, debaixo das árvores, longe da vista do irmão. Joãozinho é um palhaço “especial”. Antes do número final, tira o terço do bolso, ajoelha e convida todos os presentes a rezar com ele. Outras vezes repete a prática ouvida na igreja. É a recompensa que ele pede ao seu público, pequenos e grandes, mas os pequenos são a maioria. Depois ata uma corda a duas árvores, salta para cima, e caminha sobre ela de braços estendidos, entre repentinos silêncios e frenéticas ovações dos amigos. Parece que está ali um anjo a ampará-lo, para evitar um brusco trambolhão. Seja como for, o pequeno saltimbanco tem a protecção de Deus, irá crescendo são e forte, e um dia pregará de outros púlpitos, diferentes da corda esticada entre uma pereira e uma cerejeira.

O inimigo de enxada ao ombro

João começa a frequentar a primeira classe primária aos 9 anos, no Inverno de 1824-25 (é seu professor o Pe. Lacqua). Naquele tempo a escola começava a 3 de Novembro e terminava a 25 de Março. Frequenta a 2ª classe primária durante o Inverno de 1825-26. Margarida quer que frequente a terceira no Inverno seguinte, mas António opõe-se ferozmente:
— Que necessidade há de perder tanto tempo? Saber ler e fazer o nome é mais que suficiente. Ele que pegue na enxada como eu. Um dia, por causa de um livro que João colocara sobre a mesa ao lado do prato, levantou-se um escarcéu. João (11 anos) é agredido pelo irmão mais velho (17 anos), que num acesso de fúria o cobre de bofetadas. É impossível continuar assim. E numa manhã de Fevereiro, Margarida disse a João as palavras mais tristes da sua vida:
— É melhor saíres de casa. Qualquer dia António pode cometer um desacato.
João parte à procura de trabalho. Tem 11 anos e meio, e leva consigo uma sacola com duas camisas, dois livros e uma carcaça. Margarida fica a dizer-lhe adeus da soleira da porta, enquanto vê desaparecer por entre o nevoeiro o seu pequeno emigrante.

Moço de lavoura

Caminha até à quinta Moglia. Recolhe-se um instante em silêncio, como que a ganhar fôlego. Entra finalmente. A família dos Monglia está reunida na eira a preparar os vimes para as videiras.
— Que procuras, meu rapaz? — pergunta-lhe um sujeito ainda novo que pelos vistos deve ser o patrão.
— Procuro Luís Moglia
— Sou eu mesmo.
— Venho da parte da minha mãe, para ver se o senhor me aceita a trabalhar em sua casa.
— Mas assim tão pequeno? Quem é a tua mãe?
— Margarida Bosco. O meu irmão António maltrata-me, e é por isso que venho da parte dela à procura de trabalho.
— Olha, meu rapaz, até ao fim de Março não aceitamos ninguém. É melhor voltar para casa.
— Peço-lhe por tudo que me aceite mesmo sem ganhar nada — suplica Joãozinho — e começa a chorar.
A senhora Doroteia, mulher do patrão, comove-se.
— Deixa-o ficar, Luís. Fazemos a experiência por alguns dias.
João mete-se ao trabalho com determinação, para não ser despedido: trabalha de sol a sol. Depois, enquanto os outros vão dormir, acende um toco de vela, e continua a ler os livros que lhe tinha emprestado o seu professor. E enquanto leva os bois para o campo lá vai ele de livro na mão. O patrão não o contraria, mas abana a cabeça:
— Porque é que estás sempre a ler?
— Porque quero ser padre.
No meio dos torrões, estudar torna-se cada vez mais difícil. Assim se vão passando quase três anos.
Em Novembro de 1829 foi visitá-lo o seu tio Miguel, irmão de sua mãe:
— Então, estás contente?
— Não. Tratam-me bem, mas a minha vontade de estudar... e já fiz 14 anos.
O tio Miguel acaba por levá-lo para casa. António fica irritado com tal decisão, mas depois de discussões e mais discussões, concorda em que João estude contanto que isso não venha a prejudicá-lo na herança.

Um encontro decisivo

Naquele mesmo mês de Novembro de 1829 houve umas pregações especiais numa aldeia vizinha, Buttigliera. Entre a multidão que acorria dos montes, lá estava também João. O capelão de Murialdo, Pe. Calosso (um ancião de 70 anos), ao ver aquele rapaz caminhando sozinho, pergunta-lhe:
— Donde és, meu amigo?
— De Bécchi. Fui à pregação dos missionários.
— O que é que terás tu compreendido, com toda aquela dose de latim!
Mas o nosso homem, com toda a desenvoltura, repetiu ali, de cor, a prática inteira como se estivesse a lê-la num livro.
Pouco depois João estava sentado diante da secretária do Pe. Calosso.
— És um prodígio de memória, meu rapaz. Tens de te meter a estudar. Eu estou velho, mas farei tudo o que puder para te ajudar. Olha aqui a gramática latina. Pelo Natal iremos a ela. Agora vamos ao italiano. Este (e passou-lhe para as mãos um pequeno volume) é um livro de meditação. Lê uma página por dia e reflecte sobre ele... Se não compreenderes, pergunta. Repara bem, o Senhor deu-te uma boa inteligência, e tu deves servir-te dela antes de tudo para O conhecer. Se aprenderes muita coisa, mas não aprenderes a amá-Lo, será vão o nosso trabalho.
A partir daquele dia, João Bosco aprendeu a fazer todos os dias um pouco de meditação.
Alguns dias depois, o Pe. Calosso, de acordo com Margarida, recebeu João em sua casa. O rapaz voltava a Bécchi uma vez por semana para mudar de roupa.
Foram magníficos os meses que João passou em casa daquele grande sacerdote.
A gramática latina, manuseada sem descanso, ia chegando ao fim. Porém, numa manhã de Novembro de 1830, o Pe. Calosso teve um enfarte. João acudiu, fixou aqueles olhos agonizantes e das mãos trémulas do seu benfeitor recebeu, sem compreender, uma chave, e foi tudo.
Nada mais lhe resta senão chorar amargamente a perda do seu segundo pai.
A chave era de um pequeno cofre que continha 6 mil liras. João, aterrorizado com o pensamento de que pudessem levantar-se problemas ensombrando os restos mortais do seu amigo, entregou as chaves aos herdeiros. E tudo acabou.
Joãozinho via-se novamente só, sem mestre, sem dinheiro, sem planos para o futuro. Era caso para desesperar.

10 quilómetros por dia

Apesar de tudo, era necessário continuar, custasse o que custasse. Margarida teve que suportar a humilhação de dividir a casa e as terras com António para acabar com o inferno dentro do lar. E João, decididamente, começou a calcorrear duas vezes por dia a distância de cinco quilómetros a que ficava a escola de Castelnuovo.
Botas a tiracolo e pés doridos do longo caminhar, tinha por companheiros: a chuva e o vento, o sol e a poeira, conforme as estações.
Uma noite, enquanto repousava do cansaço, reapareceu-lhe diante dos olhos o terreiro do primeiro sonho. Lá estava o rebanho e a Senhora resplandecente em atitude de lho confiar. “Torna-te humilde, forte e robusto — repetia — e a seu tempo tudo compreenderás”.

A partir de agora, “D. Bosco”

1835. João Bosco tornou-se um jovem robusto. Tinha estudado e trabalhado duramente. Tinha conquistado centenas de amigos. Agora, com vinte anos, toma a resolução mais importante da sua vida: entra no seminário.
Seis anos de estudo aturado. 5 de Junho de 1841. O arcebispo de Turim impõe as mãos sobre a cabeça de João Bosco, e invoca o Espírito Santo que o consagra sacerdote para sempre. A partir deste momento todos passarão a chamar-lhe D. Bosco (“Dom” é o titulo dado aos padres em Itália).
Naquela tarde, ouve da boca de sua mãe: “Até que enfim és padre. Agora estás mais perto do Senhor. Mas lembra-te de que começar a dizer a missa é começar a sofrer. De hoje em diante, pensa só na salvação das almas, e não te preocupes comigo”.

Subterrâneos e muralhas negras

Que fará agora D. Bosco? São-lhe oferecidas boas propostas para capelão mas o seu projecto é outro: os rapazes. Fica em Turim a aperfeiçoar o estudo da teologia, e a estudar a situação social da cidade.
Tem como professor um jovem padre que se tornará seu amigo e conselheiro por toda a vida: o Pe. José Cafasso. Chamam-lhe “o padre da forca”, porque todo o tempo livre o ocupa a visitar as prisões e a confortar os presos, e quando algum deles é condenado à morte, acompanha-o até à forca.
D. Bosco começa a ir com o seu mestre às prisões. Naquelas enxovias escuras, entre paredes negras e húmidas, encontra caras sombrias e ameaçadoras. Sente calafrios, às vezes quase desmaia.
Mas aquilo que mais o faz sofrer é a presença de presos ainda jovens, de olhos revoltos e sorriso trocista.
Um dia vê, atrás das grades, um grupo de rapazes de pouca idade.
E tal o desgosto que as lágrimas lhe humedecem os olhos.
— Porque chora aquele padre? — pergunta um deles.
— Porque nos quer bem — responde um outro. — A minha mãe também era capaz de chorar se me visse aqui dentro...
Naquele dia, ao sair da cadeia, D. Bosco toma uma resolução firme:
“Muitos vêm para aqui porque ninguém se ocupa deles. É necessário assisti-los, instruí-los; é necessário impedir a todo o custo que rapazes ainda tão novos acabem na cadeia. Quero fazer tudo para os salvar”.

“Chamo-me Bartolomeu Garelli”

8 de Dezembro de 1841. D. Bosco prepara-se para a missa na igreja de S. Francisco de Assis. Entra na sacristia um rapazola. O sacristão, julgando tratar-se de algum valdevinos, põe-no na rua à vassourada.
Mas D. Bosco intervém;
— Que modos são esses? Arruma a vassoura!
— Porquê reverendo?
— Porque é um meu amigo.
— Se assim é. — resmungou o sacristão —, e foi chamar o rapaz.
Este volta comprometido. Tem o cabelo rapado e o casaco sujo de cal. Um rapaz da província. Ao sair de casa, os pais tinham-lhe recomendado que em Turim não deixasse de ir à Missa. Mas ele sentia-se envergonhado em ir para o meio das pessoas bem vestidas. D. Bosco dirige-lhe umas palavras amáveis e pede-lhe que espere um pouco depois da Missa, porque tem uma coisa muito importante a dizer-lhe. Terminada a Missa, leva-o a um canto da igreja e, de sorriso nos lábios, pergunta-lhe:
— Meu bom amigo, como te chamas?
— Bartolomeu Garelli, de Asti.
— Ainda tens pai?
— Não, já morreu.
— E mãe?
— Já morreu também.
— Quantos anos tens?
— Dezasseis.
— Sabes ler e escrever?
— Nem uma coisa nem outra.
— Sabes cantar?
— Não.
— E assobiar?
— Isso sei — e sorriu —. D. Bosco continua:
— Já fizeste a primeira comunhão?
— Ainda não.
— E já te confessaste alguma vez?
— Sim, quando era pequeno.
— E vais à doutrina?
— Não me atrevo. Os rapazes mais pequenos fazem troça de mim...
— E se fosse eu a explicar-te a doutrina, vinhas?
— Com todo o gosto.
— Pode ser aqui mesmo?
— Sim, contanto que não me batam!
— Fica descansado, agora és meu amigo, e ninguém te fará mal. Quando vamos começar?
— Quando o senhor quiser.
— Agora mesmo?
— É só o senhor querer.
D. Bosco ajoelha e reza uma Avé-Maria. Naquele momento nasce o Oratório, começa o grande apostolado de D. Bosco entre os jovens.
Quatro dias depois é domingo. Bartolomeu volta acompanhado de mais oito rapazes. Vêm “para falar com D. Bosco”. No domingo seguinte, D. Bosco vê quatro pequenos serventes de pedreiro a dormir encostados uns aos outros durante a homilia, muito difícil para eles. Acorda-os e convida-os a acompanhá-lo à sacristia.
Aqui aparece também Bartolomeu e os seus amigos. O número aumenta.
D. Bosco ajuda-os o rezar, celebra a missa e faz uma pequena prática ao alcance deles, viva, dialogada, salpicada de histórias e de factos interessantes.
Mais outro domingo e é já uma enchente de rapazes, pobremente vestidos mas de olhos vivos. Procuram D. Bosco, a sua palavra e o seu afecto. O exército de rapazes continua a engrossar, mas o Inverno aproxima-se. É necessário pô-los ao abrigo da chuva e da neve. O primeiro lugar de encontro é o Colégio Eclesiástico em que D. Bosco estuda. No pequeno pátio, o recreio; na igreja ao lado, as funções religiosas, o canto e as sessões de catequese. O Pe. Cafasso aprova e colabora mas os outros começam a reclamar: toda aquela barulheira era insuportável!

De um hospital para um cemitério

No Verão de 1844 D. Bosco acaba os estudos e é nomeado capelão de um orfanato para raparigas doentes, fundado na periferia de Turim pela Marquesa Barolo.
Os rapazes que seguem D. Bosco tornam-se multidão. Centenas deles invadem os campos vizinhos e apinham-se nas escadas e no próprio quarto de D. Bosco, para ouvir a sua palavra.
Agora, que tem um quarto independente, D. Bosco pensa em dar um pouco de instrução aos mais inteligentes.
Da parte da tarde vêm ter com ele em pequenos grupos, com o rosto negro da fuligem ou branco da cal, casaco pelos ombros, radiantes por terem a possibilidade de aprender. Encontram muito difícil a aritmética, o que leva D. Bosco a escrever para eles um dos seus primeiros livrinhos:
“O sistema métrico decimal”.
A Marquesa não suporta durante muito tempo todo aquele barulho. Não conseguindo convencer D. Bosco a abandonar aqueles rapazes para se dedicar unicamente à sua obra, pede-lhe para os reunir noutro sítio. D. Bosco descobre um cemitério abandonado (S. Pedro “in vinculis”) com uma capela espaçosa. No cemitério há umas arcadas e um pátio. O capelão é um seu amigo, o Pe. Tésio. A criada do capelão, ao ver chegar aquela chusma rumorosa de garotos, a princípio fica pálida, depois entra em fúria. Grita, agita a vassoura, insulta D. Bosco. Este acha melhor não insistir e lá segue com os seus rapazes à procura de outro paradeiro.
12 de Julho de 1845. Com autorização da Câmara, D. Bosco muda o acampamento para os lados dos Moinhos da cidade, na margem do rio Dora. Mas passado pouco tempo, também ali os vizinhos se queixam do barulho e da gritaria. Com mágoa, D. Bosco dá a triste notícia aos seus amigos:
— Meus amigos, não podemos continuar aqui.
Mas durante aquela breve estadia nos Moinhos, D. Bosco depara com um rapazito pálido, que o observa em silêncio. Tem apenas 8 anos e chama-se Miguel Rua. D. Bosco tinha distribuído umas medalhas aos seus garotos, mas este miúdo pálido não se atreveu a correr como os outros e acabou por ficar sem nada. Então D. Bosco aproxima-se dele. Estende-lhe a mão esquerda, e fazendo sinal de a dividir ao meio com a direita, disse-lhe sorrindo:
— Toma lá, Miguelinho, toma lá.
O rapazito olha e não compreende. Tomar o quê? Acha esquisito ao ver a mão vazia. Então D. Bosco acrescenta:
— Nós dois vamos fazer tudo a meias.
Aquele rapazito virá a ser o seu primeiro sucessor, à frente da Congregação Salesiana.

Um tambor e muitos polícias

Passamos meses e D. Bosco não consegue encontrar um tecto para abrigar os seus rapazes. Mas não desiste. Fala-lhes ao ar livre, reunindo-os nas praças desertas ou no campo. As pessoas observam. Umas riem, outras sentem pena.
— Mas que padre é aquele?
— É D. Bosco com os seus rapazes!
— Coitado, dizem que tem uma ideia fixa. No meio daquele pandemónio ainda perde o juízo.
Durante o Inverno (Novembro 1845 — Março 1846) aluga três divisões em casa do Pe. Moretta.
Na Primavera consegue alugar um terreno na periferia. Um barracão aqui existente, dá para guardar o equipamento desportivo. Há espaço para a rapaziada — várias centenas — poder divertir-se à vontade. Sentado a um canto, num banco tosco, D. Bosco confessa. Por volta das dez ouve-se o rufar de um tambor militar e os rapazes alinham em filas. Depois toca uma corneta, e aí vão eles para os lados da Consolata ou do Monte dos Capuchinhos, onde participam na Missa celebrada por D. Bosco.
Mas a atmosfera que se respira por toda a parte é de revolução, e aqueles 300 rapazes marchando ao som da corneta e do tambor começam a preocupar o governo piemontês.
O Marquês Miguel de Cavour (pai de Camilo), manda chamar D. Bosco e impõe-lhe várias coisas: reduzir o número de rapazes; evitar absolutamente que entrem na cidade em formatura; excluir os maiores por serem os mais perigosos. D. Bosco opõe-se. A conversa com o ministro acaba em tempestade. Cavour vocifera:
— Mas o que você tem a ver com estes maltrapilhos? Deixe-os lá com a sua vida. Não se meta em sarilhos. A coisa pode tornar-se muito séria para todos!
D. Bosco retira-se sem nada ceder, mas a partir daí o campo de jogos dos seus rapazes começa a ser vigiado pelos agentes da ordem. Os donos do terreno aparecem também um dia. Põem-se a observar a terra toda pisada pelo bater desalmado de todos aqueles tamancos e botifarras. Dirigem-se a D. Bosco:
— A continuar assim isto fica reduzido a um deserto! Temos muita pena, caro padre, mas tudo tem limites. Está despedido.
D. Bosco sente-se fulminado. E agora para onde ir? Já foi escorraçado de tanto lugar...
“Ao cair da tarde daquele dia — escreve D. Bosco — olhei para aquelas centenas de rapazes que se divertiam. Sem ninguém que me desse a mão, sem forças, com a saúde abalada. Afastando-me um pouco, pus-me a passear sozinho e não pude conter as lágrimas: “Meu Deus, exclamei, que fazer agora?”
Nisto aparece não um anjo, mas um homenzinho a gaguejar: Pancrácio Soave, fabricante de soda e detergentes.
— É verdade que você anda à procura de um lugar para fazer uma oficina? (laboratório em italiano).
— Não é bem uma oficina (um laboratório), mas um oratório. (Ambiente de formação religiosa e alegre convívio para a juventude).
— Seja lá o que for, o lugar existe. Se quiser ver...
Seguindo aquele homem, D. Bosco percorre, quando muito duzentos metros.
O “lugar” é um telheiro comprido e tosco, pertencente a um certo Francisco Pinardi. Pegada ao telheiro, uma nesga de terra. D. Bosco corre a dar a notícia:
— Alegrai-vos, meus amigos. Já temos Oratório! Vamos ter igreja, escola e pátio para correr e saltar. No próximo domingo lá nos encontraremos. É aqui ao lado, na casa Pinardi!
5 de Abril de 1846. O próximo domingo é domingo de Páscoa.

Dois padres no manicómio

O telheiro que D. Bosco tinha alugado ao sr. Francisco Pinardi media 15 por 6 metros. Ligado à casa Pinardi (pela parte norte), tinha sido construído havia pouco tempo, e ali trabalhava um chapeleiro e as lavadeiras arrecadavam a roupa. (Passava ali perto um canal que ia dar ao Dória, também pouco distante).
— Aqui havemos de construir a igreja — disse D. Bosco. — É preciso contratar já os operários.
Vieram os pedreiros: escavaram, reforçaram as paredes e o tecto. Depois os carpinteiros assentaram um soalho de madeira sobre o pavimento de terra batida. Os próprios rapazes, muito dos quais eram aprendizes de pedreiro, ajudavam nas poucas horas livres.
Sábado à tarde o edifício estava como novo. D. Bosco lá arranjou como pôde as alfaias indispensáveis para a nova capela. E começou a sentir o peso das dívidas. Um peso que o acompanhará até ao fim da vida. Mas a Providência não havia de abandoná-lo.
12 de Abril: dia grande! Na manhã de Páscoa, todos os sinos da cidade tocavam festivos. Junto à casa Pinardi não havia sinos mas havia a pessoa de D. Bosco que atraía os rapazes para a “baixa” de Valdocco.
Agora que Nossa Senhora lhe tinha aberto o caminho, D. Bosco tinha a certeza de chegar muito longe. Com os colegas falava dos projectos como se já fossem realidade:
— Levantarei escolas e oficinas. Tudo isto para mim é como se já existisse.
A princípio ouviam-no curiosos. Mas depois um ou outro começou a abanar a cabeça:
— D. Bosco tem ideias fixas. Vai dar em doido. Precisa de um tratamento, antes que seja demasiado tarde.
Até o seu mais querido amigo, o braço direito na obra do Oratório, o teólogo Borel, começou a ter os seus receios. Um dia falava-lhe D. Bosco com tanto entusiasmo dos seus projectos que ele não se conteve: lançando-lhe os braços ao pescoço exclamou soluçando:
— Meu pobre D. Bosco! Estás perdido.
Dois outros seus amigos, os padres Pontazi e Nasi alugaram em segredo um quarto no manicómio para lá meterem o colega que julgavam transtornado.
Uma tarde, estava D. Bosco a explicar o catecismo a um grupo, quando chegaram os dois padres num coche fechado. Descem e convidam D. Bosco a dar um passeio com eles.
— Sabemos que andas cansado. Não queres vir dar um passeio connosco?
— Com todo o gosto. É só um momento, que vou buscar o chapéu.
Um dos amigos abriu a porta:
— Sobe.
— Os meus amigos primeiro.
Os dois amigos insistiram ainda, depois entreolharam-se e, para não estragar a festa, concordaram em subir primeiro. Imediatamente, D. Bosco fecha a porta, e grita ao cocheiro:
— Rápido para o manicómio! Esperam lá estes dois clientes.
O coche partiu como uma flecha para o manicómio que ficava perto. Os enfermeiros, que estavam informados da vinda de um padre, ficaram desapontados ao verem dois. Teve de intervir o capelão para deslindar o caso. A partir daquele dia, ninguém mais ousou repetir a façanha.

O milagre dos pequenos pedreiros

Durante a semana os pedreiros de Turim começaram a ver um espectáculo fora do vulgar: um padre de batina arregaçada subia os andaimes, entre baldes de cal e montes de tijolo. Era D. Bosco que, terminados os seus afazeres, andava pelas obras para se encontrar com os seus rapazes. Era uma festa para eles. Provenientes da província, tinham vindo parar a Turim em busca de trabalho como serventes de pedreiro, e muitas vezes eram explorados por patrões gananciosos e sem escrúpulos.
Mas ele não se limitava a falar com os rapazes no lugar de trabalho. Abordava também os patrões. Inteirava-se dos salários, do tempo de descanso, da possibilidade de guardar o domingo. Foi ele um dos primeiros na Itália a estabelecer contratos regulares de trabalho para os seus jovens aprendizes, e a bater-se pelo seu cumprimento.
Mas D. Bosco sozinho não podia chegar a tudo: todo o ser humano é limitado.
Um domingo de Julho de 1846, depois de um dia extenuante, passado a confessar, pregar, organizar jogos para os seus quinhentos garotos, enquanto se dirigia para o quarto, desmaiou.
Levaram-no em braços para a cama. Tinha sido atingido por uma grave pleurisia com expectoração de sangue. Durante a noite a febre subiu assustadoramente.
Pelos andaimes dos pequenos pedreiros, pelas oficinas dos jovens mecânicos, a notícia espalhou-se rápida como um relâmpago: “D. Bosco está a morrer”.
Naquela noite, ao quarto onde D. Bosco agonizava, iam chegando grupos de rapazes apavorados. Tinham ainda a roupa suja do trabalho, o rosto branco da cal. Nem tempo tinham tido de jantar para correr até lá. Choravam, rezavam:
— Senhor, não o deixes morrer!
Oito dias esteve D. Bosco entre a vida e a morte. Houve rapazes que, naqueles oito dias, trabalhando sob um sol escaldante, não provaram uma gota de água para arrancar do Senhor a sua cura. No Santuário da Consolata os pequenos serventes de pedreiros revezavam-se na oração: dia e noite havia sempre algum de joelhos diante de Nossa Senhora.
Às vezes o sono era tanto que os olhos se fechavam (depois de 12 horas de trabalho), mas não desistiam, pois D. Bosco não podia morrer. E a graça chegou, arrancada ao céu por aqueles miúdos que não se resignavam a ficar sem pai.
Uma tarde de domingo, pelos fins de Julho, apoiado a uma bengala, D. Bosco aparece no Oratório.
Os seus rapazes voam ao seu encontro. Os mais velhos obrigam-no a sentar-se num cadeirão, levantam-no aos ombros, e levam-no em triunfo até ao pátio. Todos cantam e choram de alegria, incluindo o próprio D. Bosco.
Entram na capela e agradecem ao Senhor. No silêncio absoluto que se fez, D. Bosco disse a todo o custo estas palavras:
— A minha vida é a vós que a devo. Mas podeis ter a certeza de que, de hoje em diante, toda ela será gasta em benefício vosso.
Naqueles dias de calor asfixiante, D. Bosco foi passar alguns meses de convalescença à terra natal. Prometeu que a demora não seria longa: até ao cair da folha.

Uma mãe para 500 rapazes

Era o dia 3 de Novembro de 1846. As folhas caíam com o vento do Outono, e D. Bosco regressou a Turim. Desta vez não vem sozinho: acompanha-o Margarida sua mãe, que tinha concordado em acompanhá-lo para se tornar a mãe de todos aqueles rapazes.
Os dois peregrinos fizeram a longa caminhada a pé. Margarida trazia no braço uma canastra, com todos os seus haveres: alguma roupa branca e um pouco de comida.
Já perto do Oratório um sacerdote amigo de D. Bosco reconhece-o, dá-lhe as boas-vindas e quer saber notícias:
— Então como é que vai a saúde?
— Sinto-me bem, obrigado.
— Onde é que ficas a viver?
— Aqui, na casa Pinardi. Aluguei lá três divisões. Como vês, trouxe comigo a minha mãe.
— Com que meios contas?
— Ainda não sei. Mas a Providência lá está.
— És sempre o mesmo — murmurou o outro abanando a cabeça —. Depois tirou o relógio do bolso e entregou-lho dizendo:
— Gostaria de ter mais recursos para poder ajudar-te.
Margarida foi a primeira a entrar na nova casa: três quartinhos nus e tristes com os respectivos leitos, duas cadeiras e alguns tachos. Esforçou-se por sorrir e disse a D. Bosco:
— Na nossa terra, andava numa roda viva para ter tudo em ordem, limpar os móveis e lavar a louça. Aqui terei menos preocupações...
Ambos, de sorriso nos lábios, meteram mãos à obra.
D. Bosco pôs na parede um crucifixo e um pequeno quadro de Nossa Senhora. Margarida preparou as camas e depois mãe e filho começaram a cantar. A canção dizia assim:
“Guai al mondo — se ci sente,
Forestieri — senza niente”
(Ai se o mundo nos descobre,
Forasteiros, mãos vazias...)
Um dos rapazes, Estêvão Castagno, ouviu-os, e a notícia correu veloz de boca em boca entre todos os rapazes de Valdocco:
— D. Bosco já voltou...

“Sou órfão. Venho de Valsesia”

Agora que tinha a mãe consigo, D. Bosco pensa poder fazer alguma coisa mais pelos seus rapazes. Alguns, à noite, não tinham onde dormir. Ficavam em qualquer canto ou nos miseráveis dormitórios públicos.
Pensou em recolher em casa os mais abandonados.
A primeira experiência saiu-lhe mal. Tinha posto alguns a dormir no palheiro. De manhã, nem um só para amostra: tinham fugido todos levando consigo as mantas que Margarida lhes tinha emprestado. Mas não desanimou.
Uma tarde de Maio. Chove a cântaros. D. Bosco e a mãe tinham acabado de jantar, quando alguém bate à porta. É um rapaz dos seus 15 anos, todo molhado e enregelado.
— Sou órfão. Venho de Valsesia. Sou servente de pedreiro, mas ainda não encontrei trabalho. Tenho frio e não sei para onde ir...
— Entra — disse-lhe D. Bosco —. Vai para a lareira, pois ensopado como estás pode ser perigoso.
Margarida prepara-lhe qualquer coisa para comer. Depois pergunta-lhe:
— E agora, para onde vais?
O rapaz fica pensativo. Depois, de lágrimas nos olhos:
— Não sei. Tinha três liras quando cheguei a Turim, mas já as gastei todas. Por favor, não me mande embora.
Margarida pensa nas mantas que ti¬nham voado:
— Poderias ficar, mas quem nos garante que não foges com as panelas?
— Não senhora. Sou pobre, mas nunca roubei.
D. Bosco acabara de sair debaixo da chuva. Pouco depois entra comuns tijolos, faz com eles quatro suportes sobre os quais coloca umas tábuas. Depois vai à sua própria cama. Tira o colchão e estende-o sobre as tábuas.
— Ficas a dormir aqui, meu caro. E ficarás enquanto for preciso. Ninguém te mandará embora.
É o primeiro órfão que entra na casa de D. Bosco. No fim do ano são sete. Mais tarde serão milhares.
Um dia D. Bosco entra numa barbearia. Aproxima-se um pequeno aprendiz para lhe ensaboar a cara.
— Como te chamas? Quantos anos tens?
— Carlitos. Tenho 11 anos.
— Muito bem, Carlitos, vê lá se fazes esse trabalho bem feito. E teu pai?
-— Morreu. Só tenho mãe.
— Pobre menino, sinto muito.
O rapazito tinha acabado de lhe ensaboar a cara.
— Agora, coragem, pega na navalha como se deve e faz-me a barba. Acode o patrão, alarmado:
— Desculpe, reverendo! O miúdo ainda não é capaz. O trabalho dele é só passar o sabão.
— Mas alguma vez há-de ser a primeira, não é verdade? Por isso pode começar comigo. Força, Carlitos.
Carlitos fez aquela barba tremendo como uma folha. Quando a navalha se movia em volta do queixo, suava em bica. Lanho aqui, lanho ali, conseguiu chegar ao fim.
— Parabéns Carlitos! — Sorriu D. Bosco —. Agora que já somos amigos, tinha muito gosto em que fosses visitar-me de vez em quando.
Um dia de Verão, D. Bosco dá com ele a chorar ao pé da barbearia:
— Que te aconteceu?
— Morreu a minha mãe, e o patrão despediu-me. E não sei para onde ir.
— Vem comigo. Sou pobre, mas ainda que só tenha um pedaço de pão, reparto-o contigo.
Margarida preparou mais uma cama. Carlitos Gastini ficou mais de cinquenta anos com D. Bosco. Alegre, cheio de vida, tornou-se o animador brilhante de todas as festas. Fazia rir toda a gente. Mas quando falava de D. Bosco, chorava como uma criança. “Era tão meu amigo!” exclamava comovido.

Sapateiros no corredor e alfaiates na cozinha

Em 1848 rebentou a primeira e sangrenta guerra da Independência.
Nos campos de batalha caíram milhares de homens, e pelas ruas de Turim começaram a vaguear grupos de órfãos sem casa nem futuro.
D. Bosco ampliou o orfanato. Bateu à porta dos ricos, importunou nobres e damas da aristocracia, conseguindo assim dinheiro para a construção de urna casa mais ampla, para os rapazes abandonados sem eira nem beira.
Muitos destes miúdos eram espertos e inteligentes. No entanto viam-se condenados a trabalhar como serventes de pedreiro para sobreviver e assim ficariam toda a vida.
D. Bosco não se confortava com semelhante situação.
Abriu um curso nocturno, convidou sacerdotes amigos e outras pessoas de boa vontade a ajudá-lo. As aulas eram dadas na cozinha, na sacristia, no coro da capela, onde quer que houvesse um canto livre.
E à noite, enquanto todos descansavam, D. Bosco escrevia livros para os seus rapazes. Eram livros fáceis, económicos, que chegaram a ser adoptados em muitas escolas de Turim.
Mas os rapazes, que enchiam de vida o pátio do Oratório, já não podiam aumentar mais. D. Bosco pensou então em fundar um outro:
— Meus caros amigos, quando as abelhas já não cabem na colmeia, uma parte delas vai em busca de outro lugar. E nós temos de fazer como as abelhas. Vamos formar uma segunda família e abrir outro Oratório.
E o novo oratório surgiu nas proximidades de Porta Nuova, e ficou a chamar-se “Oratório de S. Luís”.
Mas bem depressa também este ficou a transbordar, e D. Bosco fundou um terceiro na zona de Vanchiglia: “Oratório do Anjo da Guarda”.
O dia 2 de Fevereiro foi um dia de grande esperança para D. Bosco. Quatro dos rapazes que tinham vindo da rua, e que ele tinha formado com tanto desvelo, manifestaram-lhe o desejo de “serem como ele”: sacerdotes. Eram eles José Buzzeti, um pequeno servente de pedreiro da Lombardia; Carlos Gastini, o ajudante de barbeiro que lhe tinha feito a barba a tremer; dois outros jovens: Tiago Bellia e Félix Reviglio. Naquele mesmo dia receberam a batina, e começaram a ajudá-lo na assistência aos mais pequenos.
Em 1852 D. Bosco ampliou a velha casa Pinardi, e construiu um novo e grande edifício. Tinha de acolher não só os trabalhadores mas também os estudantes cujo número era cada vez maior.
Com a ajuda dos primeiros clérigos, muito jovens ainda, D. Bosco lançou-se num empreendimento grandioso e arrojado: no espaço de três anos (de 1853 a 1856) abriu as oficinas de sapataria, alfaiataria, encadernação e carpintaria. Começou-se do nada: alguns bancos num pequeno corredor para os sapateiros; duas pequenas mesas para os alfaiates na cozinha. O primeiro mestre-alfaiate foi o próprio D. Bosco, como foi também ele o primeiro a ensinar a bater a sola aos sapateiros aprendizes.
Era a primeira semente que bem depressa viria a trasformar-se numa grande árvore.
Mas onde é que D. Bosco ia buscar o dinheiro para pagar o pão dos seus rapazes e as paredes dos seus edifícios? A esta pergunta o Santo respondia com uma só palavra: “A Providência”. O Senhor despertava benfeitores, inspirava pessoas boas, fazia chegar cartas com ofertas.
E às vezes intervinha directamente de forma prodigiosa.
José Buzzetti viu-o com os seus próprios olhos, em 1849. D. Bosco tinha prometido castanhas cozidas aos seus 400 rapazes. Margarida porém tinha cozido só três ou quatro quilos. O cesto de onde D. Bosco tirava as castanhas com uma grande concha continha uma dúzia de punhados. E no entanto as castanhas chegaram para todos, mesmo para ele, Buzzetti, que recebeu no fim a sua ração como os outros, com olhos arregalados pelo milagre que tinha presenciado ali mesmo.

E Deus mandou um cão

A seita protestante dos Valdenses fazia muitos adeptos entre o povo de Turim, servindo-se inclusivamente do atractivo do dinheiro. Nesse tempo ainda não havia “diálogo”, mas luta aberta entre católicos e protestantes. D. Bosco, embora arrasado de trabalho, fundou em 1853 as “Leituras Católicas”: uma série de pequenos livros de carácter apologético e leitura fácil que avivavam a fé dos católicos.
Quando é que os escrevia? Durante a noite, em que habitualmente só dormia umas horas.
As “Leituras Católicas” provocaram a ira dos Valdenses, que a tudo recorreram para o fazer calar.
Uma tarde, enquanto dava aula aos maiores, um desconhecido disparou-lhe um tiro da janela. A bala passou-lhe rente ao peito e rasgou-lhe a batina. Perante o susto dos alunos, D. Bosco disse apenas sorrindo:
— Nossa Senhora é muito nossa amiga, e aquele sujeito deve ser um fraco atirador.
Depois olhou para o rasgão da batina e acrescentou com tristeza:
— Pouca sorte, era a melhor batina que eu tinha!
Um dia apareceu no pátio um meliante armado de punhal. Procurava D. Bosco para o matar. Como não o conhecia, confundiu-o com um dos clérigos, que fugiu logo pedindo auxílio.
Apesar de a polícia ter sido avisada, o criminoso voltou ainda mais três vezes, enchendo de terror o Oratório.
Uma noite, já muito escuro, chegaram alguns homens a chamar D. Bosco para que fosse confessar uma doente em estado grave.
D. Bosco foi imediatamente. Mas ao ser introduzido num quarto, alguém apagou a luz, e aqueles malvados caíram sobre ele armados de varapaus. D. Bosco mal teve tempo de agarrar numa cadeira e levantá-la para defender a cabeça. Recuando debaixo de uma chuva de pauladas conseguiu dar com a porta e fugir.
Uma noite D. Bosco voltava para casa, quando dois homens lhe barraram o caminho.
Lançaram-lhe uma capa pela cabeça, quando apareceu um grande cão, de cor pardacenta e focinho de lobo, aos urros. Atirando-se com as patas contra o peito de um e depois do outro, pô-los em fuga.
A seguir acompanhou D. Bosco até ao portão do Oratório.
“Todas as noites em que vinha sozinho — conta D. Bosco — ao entrar no arvoredo perto do Oratório, via sempre aparecer o “Pardo”. Os jovens do Oratório viram-no muitas vezes entrar no pátio. Uma vez, espantados, dois rapazes quiseram apedrejá-lo, mas José Buzzetti interveio logo:
— “Não lhe façam mal: é o guarda de D. Bosco”.
Carlos Tomatis, que frequentava então o Oratório, diz a respeito dele: “Era um cão de aparência temível. Muitas vezes Margarida ao vê-lo exclamava: “Oh que animal tão feio”. Fazia lembrar um lobo.
Certa noite D. Bosco tinha de sair para tratar uns assuntos urgentes, mas deu com o “Pardo” deitado na soleira da porta. Procurou afastá-lo, saltar por cima dele. Mas o cão começa a rosnar e empurrava-o para trás. Margarida, que já conhecia o cão, disse a D. Bosco:
— Se não me queres dar ouvidos a mim, obedece pelos menos ao cão: acho que não deves sair.
No dia seguinte D. Bosco soube que um assassino armado de pistola o esperava numa esquina.

A morte na cidade de Turim

Julho de 1854. Uma notícia alarmante percorre as ruas de Turim: grassa a cólera na Ligúria e está a alastrar como uma mancha de óleo nas aldeias do baixo Piemonte. O rei, a rainha e toda a família real fogem em coches fechados, e refugiam-se no castelo de Casellette, onde vivem os condes Cays.
Entretanto, na periferia da cidade, nos dias 30 e 31 de Julho apareciam os primeiros casos da terrível peste.
5 de Agosto. O bairro mais atingido de Turim é Borgo Dora, que confina com Valdocco. Todos os dias mais de cem vítimas jazem pelas diversas casas e nos lazaretos.
O presidente da Câmara dirige um apelo dramático aos sacerdotes, religiosos e religiosas: morrem pessoas nos lazaretos por falta de médicos e enfermeiras. Precisa-se de gente de boa vontade, disposta a arriscar a vida.
Naquela noite D. Bosco falou aos jovens do seu Oratório:
— O presidente da Câmara lançou um apelo. Se entre os maiores alguém se sentir com coragem de vir comigo aos hospitais e às casas particulares a tratar os doentes da cólera, faremos uma obra boa e agradável ao Senhor. Garanto-vos se procurardes viver todos na graça de Deus a cólera não terá aqui entrada.
Catorze dos maiores deram o seu nome. Poucos dias depois, outros trinta conseguiram obter a licença, apesar de serem ainda muito novos.
Foram dias de trabalho árduo, nada convidativo.
Durante mais de um mês aqueles 44 rapazes voluntários não tiveram mãos a medir. D. Bosco dava o exemplo a todos: sempre pronto a acudir, a confortar, a administrar os sacramentos.
Com as primeiras chuvas do Outono, o número de vítimas foi diminuindo. A 21 de Novembro deu-se por fim o estado de “emergência”.
Um caso ou outro, porém, foi ainda detectado no princípio do Inverno. E foi precisamente nesta altura que se manifestou a santidade de Domingos Sávio, um rapazinho de Mondónio recém-chegado ao Oratório (29 de Outubro).
Passando uma noite pela rua Cottolengo, Domingos fixou os olhos na fachada de uma casa, e como uma voz o chamasse enfiou pelas escadas e subiu apressadamente. Sem hesitar bateu à porta e apareceu o dono da casa.
— Desculpe — disse Domingos — não é aqui que mora uma pessoa atingida pela cólera e que precisa de assistência?
O homem arregalou os olhos:
— Não, aqui não há ninguém com essa doença. Era o que faltava!
— Tem a certeza?
— A certeza completa, que diabo!
— Deve estar enganado. Dá-me licença que entre?
O homem ficou fora de si. Ele sabia perfeitamente que na sua família, graças a Deus, estavam todos bem. Mas a insistência daquele rapaz começou a intrigá-lo.
— Entra, entra e verifica com os teus próprios olhos.
Deram voltas aos quartos, à cozinha, ao armazém. Nada.
— Mas não há mais nenhum quarto, algum canto no sótão?
— Ah! sim — disse o homem batendo com a mão na testa —. Vamos lá acima.
Subiram. E o que foram descobrir? Uma pobre mulher, aninhada a um canto, o rosto contraído pela doença, agonizava.
— Chamem depressa um padre! — segredou Domingos.
— Só faltava esta! — resmungava o pobre homem enquanto descia as escadas a chamar um padre. E lembrou-se então de que aquela infeliz lhe tinha pedido para a deixar ficar ali a dormir durante algum tempo. E nunca mais tinha pensado no assunto.
E uma pergunta importuna lhe martelava o cérebro:
— Como é que este rapaz conseguiu saber?
Com o avançar do Inverno os casos de cólera cessaram completamente. A cidade voltou a respirar.

As grandes realizações

O pequeno punhado dos primeiros clérigos (4) tinha-se multiplicado.
E D. Bosco pensou que era chegado o momento das “grandes realizações”.
Os anos seguintes iriam trazer muito trabalho, problemas cada vez mais difíceis, obras que desafiaram o tempo.
18 de Dezembro de 1859: no pequeno quarto de D. Bosco, nasce a família dos “Salesianos”. Os primeiros dezassete rapazes que manifestaram a vontade de seguir D. Bosco decidem viver unidos na “Congregação Salesiana”, com vista a trabalhar sempre a favor dos rapazes pobres.
30 de Julho de 1860: sobe os degraus do altar para celebrar a sua primeira Missa o Pe. Miguel Rua, o rapazinho pálido que D. Bosco encontrou nos moinhos, junto ao Dora, e ao qual tinha oferecido metade da sua mão. Ele vai tornar-se agora um outro D. Bosco, a sua sombra fiel.
Abril de 1864: no campo de Valdocco, D. Bosco lança a primeira pedra do Santuário de Maria Auxiliadora. Põe nas mãos do construtor a primeira soma de dinheiro: oito soldos.
1872: D. Bosco funda a congregação das Filhas de Maria Auxiliadora.
Às primeiras irmãs diz:
— Sois poucas e pobres, mas haveis de ter tantas alunas que nem sabereis onde metê-las.
11 de Novembro de 1875: no Santuário de Maria Auxiliadora, apinhado de gente comovida, D. Bosco entrega o crucifixo aos primeiros dez missionários salesianos que partem para a América do Sul. Chefe da expedição é João Cagliero, um dos primeiros rapazes do Oratório. Nascem assim as Missões Salesianas, que se estenderão por todo o mundo.
9 de Maio de 1876: Pio IX aprova os “Cooperadores Salesianos”, a quem D. Bosco chama “salesianos externos”. São os amigos das suas obras, que trabalham pela juventude e o ajudam com meios financeiros.
Antes de morrer, D. Bosco dir-lhes-á:
— Sem a vossa ajuda eu pouco ou nada teria feito.
1877: D. Bosco funda o “Boletim Salesiano”, órgão de ligação entre os cooperadores (que já eram centenas de milhar). É uma revista mensal que leva, a todos os associados, notícias da Congregação, as cartas dos missionários, a palavra viva de D. Bosco.
Mas quanto mais obras salesianas se estendiam pelo mundo, maiores somas de dinheiro eram precisas. Para sustentar as missões da América, para alimentar milhares de rapazes abandonados, nos últimos anos da sua vida D. Bosco viu-se obrigado a peregrinar pela Itália, pela França e pela Espanha, em busca de meios. Foi um trabalho extenuante.
Nossa Senhora abençoou visivelmente estas viagens: as mãos de D. Bosco restituíam a vista aos cegos, o ouvido aos surdos, a saúde aos enfermos. Por toda a Europa já era conhecido como “o padre que faz milagres”.
Maio de 1887: D. Bosco tinha terminado a sua última viagem à Espanha a pedir ajuda. O Papa incumbira-o de construir em Roma um templo ao Sagrado Coração de Jesus.
Agora, curvado pelos anos e pela fadiga, sobe ao altar do grandioso templo para celebrar a Eucaristia. Os seus olhos arrasam-se de lágrimas. E não consegue contê-las até ao fim da celebração. A seguir é preciso levá-lo à sacristia. O Pe. Viglietti (que estivera junto dele durante toda a Missa) pergunta-lhe ao ouvido:
— O que é que tem, D. Bosco?
E ele, de novo entre lágrimas:
— Representou-se diante de mim, com toda a nitidez, a cena do primeiro sonho, aos nove anos. Estava a ver e ouvir o que a minha mãe e os meus irmãos diziam a respeito do meu sonho...
Naquele sonho distante Nossa Senhora afirmara-lhe:” A seu tempo tudo compreenderás”. Agora, num olhar retrospectivo, parecia-lhe compreender tudo perfeitamente. Tinha valido a pena enfrentar tanto trabalho, tantos sacrifícios, para salvar tantos rapazes.
Morreu na madrugada de 31 de Janeiro de 1888. Aos salesianos, que velavam junto dele, murmurou nos derradeiros momentos:
— O importante é fazer bem a todos, e mal a ninguém!... Dizei aos meus rapazes que os espero no céu.

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