terça-feira, 26 de junho de 2007

Madre Teresa de Calcutá

Terésio Bosco
Madre Teresa de Calcutá
Porto, Edições Salesianas, 1990




A religião é o fundamento da vida de Madre Teresa. Ela diz: “A minha vida é dedicada a Cristo. É para ele que respiro e vivo. É para mim uma dor insuportável quando me chamam assistente social. Se tivesse arranjado emprego como funcionária da Segurança Social, há muito que o teria deixado”.


Uma bacia de água limpa


Desceram-no da carroça e a braços levaram-no para a barraca. Os seus gemidos pareciam o ganir de um cão. Se tivesse mais forças, teria ladrado ou dado urros de dor, porque o cancro já lhe tinha devorado metade do corpo.
Os doentes das barracas vizinhas começaram a resmungar. Alguém levantou a voz:
— Não sentis o cheiro? Levai-o para longe.
Uma mulher magra, vestida com um sari branco, aproximou-se com uma bacia e ligaduras. Mas o cheiro horrível que vinha daquelas chagas fê-la empalidecer. Saiu a correr para não desmaiar. O alarido dos doentes tornou-se ameaçador:
— Levem para longe esse cadáver. Deixem-nos morrer em paz...
Agarrando-o pelas mãos e pelos pés, três irmãs pegaram nele e levaram-no para a barraca situada mais a Norte, num lugar fresco à sombra. Era o depósito dos cadáveres. Pousaram-no no chão. Madre Teresa viu que as outras duas já não podiam mais e disse:
— Trazei-me uma bacia de água limpa e, depois, ide ter com os outros.
Pouco a pouco, começou a lavar as horríveis chagas, acompanhada por um longo gemido, entrecortado somente por sentidos gritos de dor daquele desesperado.
A determinada altura, os olhos, que até então a tinham fixado sem nada ver, pousaram sobre ela. O gemido acabou. O moribundo procurava dizer uma palavra:
— Onde estou?... Quem sois?... Como conseguis suportar este cheiro?
— Isto não é nada — respondeu ela — comparado com o teu sofrimento.
Morreu à tardinha. Madre Teresa ainda lá estava, segurando-lhe a cabeça e dizendo-lhe palavras de esperança. Aquele homem, cujo nome ninguém sabia, ainda conseguiu dizer:
— Tu és diferente das outras. Obrigado!
E ela:
— Sou eu quem te agradeço, pois tu sofres com Cristo.

A carroça dos moribundos

Logo de madrugada, Madre Teresa voltou a sair pelas ruas de Calcutá, acompanhada de duas irmãs. A mais nova puxava a carroça. Nesta “cidade negra” até os passeios das ruas são habitados: homens e mulheres de todas as idades, quando a fome ou a febre os devora, deitam-se nos passeios; ali, esperam a morte. Os transeuntes não se preocupam. É uma coisa normal; sempre assim foi. As crianças pequeninas apertam-se contra a mãe que acaba de morrer e choram durante algum tempo. Depois, também elas ficam sossegadas e tranquilas. A morte passa por todos. As irmãs da Madre Teresa carregam, na carroça, os moribundos e levam-nos para a sua casa “Nirmal Hriday”, que, na antiga língua dos Brâmanes, significa: “Coração Imaculado”. Ali, colocam-nos sobre enxergas limpas, lavam-lhes as chagas, enxotam-lhes do corpo os insectos e cobrem-nos com um lençol limpo.
Madre Teresa passa pelas longas filas de enxergas acariciando mãos, dizendo palavras de esperança. É uma mulher pequena e magra, com um rosto estranho... envelhecido e, ao mesmo tempo, luminoso, belo como uma rocha enrugada pelo vento e pela chuva.

O pobre e o Papa


No dia 5 de Dezembro de 1964, Paulo VI terminava a sua viagem à Índia e, no aeroporto de Bombaim, saudava a multidão. Também Madre Teresa tinha vindo de Calcutá para receber a bênção do Papa. Tinha escolhido, para pernoitar, o “centro assistencial” que as irmãs tinham posto a funcionar num dos bairros mais pobres da periferia.
No dia anterior, dirigindo-se para o grande recinto oval onde o Papa encerrava o Congresso Eucarístico Internacional, fora atraída por um forte grasnar de corvos num aglomerado de barracas. Encontrara um velho moribundo, encostado a uma árvore. Braços finos como canas de bambu, rosto esquelético e imóvel. Com a ajuda de um rapaz, tinha-o levado para o centro assistencial.
Ora, enquanto Paulo VI saudava a multidão, o velho agonizava e Madre Teresa estava junto dele. Escreveu Curtis Pepper: “Chamava-o pelo seu nome, Onil, e sussurava-lhe, em língua bengali, palavras de conforto. Nenhum hospital tinha querido recebê-lo. Ninguém, naquela cidade de cinco milhões de habitantes, onde estão recenseados oficialmente três mil bairros pobres, tinha tido tempo de estender-lhe a mão enquanto estava para expirar. “Como te sentes, Onil?” — pergunta Madre Teresa. Para o velho já não havia esperança alguma: a denu-trição tinha-o levado ao ponto donde já não é possível voltar atrás. Nem o alimento, nem a ciência, nem nada o podiam salvar. Clinicamente, Onil estava morto, se bem que conseguisse falar ainda: “Vivi como um animal, mas agora morro como um ser humano...” Logo a seguir, expirou nos braços da Irmã que rezava por ele em bengali.
Madre Teresa não sabia que, naquele preciso momento, o Papa falava dela no aeroporto de Bombaim. Dizia à multidão: “Antes de deixar a Índia, desejamos oferecer o nosso automóvel a Madre Teresa, superiora das Missionárias da Caridade, para que o utilize na sua missão de amor”.

Recém-nascidos em assentos vermelhos

O automóvel era um Lincoln branco, descapotável e com assentos vermelhos, que os católicos americanos tinham oferecido ao Papa para as suas deslocações na Índia.
Desde o dia 6 de Dezembro, os habitantes da periferia de Bombaim viam o Lincoln branco, guiado por um hindu
esfarrapado, percorrer os bairros miseráveis da cidade. Parava em todos os depósitos de lixo. Saíam duas irmãs, vestidas com sari de algodão branco, que procuravam entre os detritos, e muitas vezes encontravam pequenos embrulhos com alguma coisa viva, palpitante lá dentro: um recém-nascido que uma mãe tinha abandonado porque não podia alimentá-lo. No “Centro” das Missionárias da Caridade já havia mais de cem bebés, bem dispostos, a gritar e a chuchar o leite que vinte cabras produziam cada dia.
Posteriormente, e de improviso, o Lincoln desapareceu. “A oferta do Papa foi muito preciosa e causou-me uma grande emoção” — disse Madre Teresa. — “Mas demo-nos conta que a gasolina era muito cara e decidimos renunciar ao automóvel vendendo-o. Um rico hindu ofereceu-me vinte e sete milhões: um preço de estimação, evidentemente, que eu aceitei. Metade foi-me dado em dinheiro e a outra metade em terrenos, em que começámos a construir a “cidade dos leprosos”.
As irmãs continuaram a percorrer os bairros degradados, à procura de recém-nascidos, de moribundos e de leprosos. Mas levavam a carroça puxada à mão.

18 anos: que rumo dar à vida?

Em criança, Madre Teresa chamava-se Agnes Gonxha Bojaxhiu. Vivia em Skopje, uma cidade que, muitos anos depois, seria destruída por um terramoto. Quando Agnes nasceu (1910), Skopje pertencia à Albânia, passando depois para a posse da Jugoslávia.
Quando frequentava as escolas da cidade, Agnes começou a fazer parte de um grupo juvenil muito empenhado. O assistente do grupo era um jovem padre jesuíta. Por essa altura, os jesuítas de Skopje abriram uma missão perto de Calcutá.
À sua pátria chegavam cartas dramáticas, que descreviam o estado de extremo abandono em que vivia a gente da Índia. Aos 12 anos, Agnes ouviu ler aquelas cartas no seu grupo e começou a pensar: “gostaria de ir para a missão de Calcutá”. Era o começo, simplicíssimo, de uma vocação.
1928. Agnes tem 18 anos. O futuro começa a ser uma preocupação cons­tante: “que rumo dar” à sua vida. A ideia das missões apodera-se dela cada vez mais. Reza, para que aquilo não seja uma fantasia. Pergunta ao confessor: “Como posso saber que Deus me chama?”. Ouve a resposta: “Através da alegria. Se o pensamento de dedicar a vida a Ele e aos irmãos te causa alegria e paz, uma alegria profunda e tranquilizante, há razões sérias para pensar que Deus te chama. A alegria profunda funciona como bússula, mesmo quando aponta um caminho duro e difícil”.
O pensamento de se tornar missionária desperta, de facto, nela uma alegria tranquila e profunda. Consegue a autorização do pai e da mãe, e faz o pedido para entrar nas “Irmãs de Loreto”, que têm a casa-mãe na Irlanda e muitas missões na Índia.
Depois de uma breve estadia em “Loreto Abbey” de Rathfarnham, nas proximidades do Danúbio, foi enviada para Dajeeling, na Índia.
Torna-se professora na “St. Mary High School” de Calcutá. A escola estava situada no bairro mais elegante da cidade e era frequentada pelas raparigas das famílias mais ricas. Durante alguns anos, a Irmã Teresa foi também directora da escola.
Deus chama pela segunda vez
1943. Em plena guerra mundial, uma grande fome abate-se sobre Bengala. Dois milhões de pessoas morreram de fome nos campos desolados por uma seca invulgar. O pensamento de todas aquelas vítimas, e de tantos milhares, que morrem nas ruas de Calcutá todos os dias, começa a atormentar a Irmã Teresa. Parece-lhe absurdo continuar a ensinar um pequeno número de privilegiados, enquanto tantos dos seus irmãos morrem a poucos metros ou a poucos quilómetros de distância, no mais completo aban­dono. Embora nunca se tenha limitado a ensinar superfícies e montanhas, mas também procurado sensibilizar as suas alunas para o grave problema dos pobres e marginalizados, parece-lhe que, nesta circunstância trágica, é preciso fazer alguma coisa mais, empenhar-se pes­soalmente.
Um dia, intui que este sentimento bem poderá ser uma segunda chamada de Deus. Para estar segura, dirige-se à Superiora da sua Congregação e, depois, ao arcebispo de Calcutá, D. Perier. Expõe o projecto de deixar o convento e de viver entre os pobres.
A resposta é um “não”. Porém, não se irrita. Continua a ensinar com serenidade na “High School”. Se aquele sentimento for verdadeiramente a vontade de Deus, Ele vai mostrar-lhe o caminho. “Os bispos — diz — não podem certamente permitir às irmãs que formem grupos separados cada vez que vima delas imagina que Deus lhe falou”.
Mesmo depois da recusa seca, D. Perier não rasgou a carta da Irmã Teresa.
Tem-na à mão sobre a sua mesa de trabalho e, de quando em quando, toma a lê-la. Esta Irmã Teresa não pede para abandonar a vida religiosa, mas para vivê-la de maneira diferente, mais em contacto com a gente pobre que morre no maior abandono. Quer seguir urn caminho que grandes santos já antes dela traçaram na Igreja, de Vicente de Paulo ao Cottolengo. Não é, pois, uma coisa estranha.
Ela, no entanto, conclui que será melhor apresentar o assunto ao Papa. Será ele quem vai decidir.
A resposta de Roma chega a 7 de Agosto de 1948. Pio XII está de acordo. A Irmã Teresa pode sair do convento e fazer a sua experiência de viver entre os pobres, sob a responsabilidade do arcebispo.
Teresa deixa o hábito de religiosa e veste um sari branco, como as mulheres pobres da Índia. Com um par de sandálias nos pés nus, algumas rupias no bolso e uma grande fé no coração, deixa o centro de Calcutá e dirige-se para as barracas da imensa periferia.


Cidade branca e cidade negra


Quem quer fazer uma ideia de Calcutá sobe à torre chamada Ochterlony Monument. Lá de cima, aquela imensa cidade, a que Nerhu chamou “Cidade pesadelo”, aparece nitidamente com as suas duas faces: bairros elegantes, ruas amplas, soberbos arranha-céus na “cidade branca”; inumeráveis pequenas barracas, casebres pardacentos que se estendem até se perderem com o horizonte nebuloso na “cidade negra”.
A primeira foi construída pelos comerciantes ingleses e é hoje habitada pelos hindus ricos.
A segunda é um imenso formigueiro humano aonde chegam todos os dias multidões de pessoas anónimas, que abandonam o campo devastado pela terrível seca ou pelas chuvas diluvianas. A enchente de miseráveis lança-se para o interior da cidade chegando a infiltrar-se na grande estação ferroviária de Hwrah, a maior estação dos caminhos-de-ferro da Índia. Mendigos reduzidos a esqueletos vivos, crianças famintas e sujas, leprosos refugiados nos montes de lixo, voo baixo de corvos e abutres. Para quem visite Calcutá, a fome e a morte são o cartão de visita desta imensa e babélica “cidade negra”.
Teresa conhecia muito bem Calcutá. Deixando a “cidade branca”, passou a viver na “cidade negra”.
Depois de uma sumária preparação médico-sanitária recebida na “Missão médica americana”, começou a sua missão reunindo as primeiras crianças abandonadas que encontrou. Cinco no primeiro dia, vinte e uma no segundo, quarenta no terceiro... Ensinou-as a lavar-se. Depois, como não tinha um quadro preto, começou a ensinar a ler e a escrever, fazendo riscos no chão.
Passava o resto do tempo ao lado dos moribundos, estendidos ao longo das ruas. Sentava-se junto ao primeiro leproso que encontrava, desinfectava-lhe as chagas e ligava-lhas. “Tinha apenas cinco rupias no bolso — recorda. — Não podia fazer mais”.

“Quero trabalhar contigo em favor dos pobres”

A escassez de alimentos que tem à sua disposição e a imensidão da miséria abalam a sua saúde logo nos primeiros dias. “Tenho a impressão — escreve — de naufragar num oceano de dor e de desolação”. A fome e o cansaço obrigam-na a pensar seriamente num possível regresso à “St. Mary High School”. Mas recompõe-se.
Michael Gomes, um funcionário governamental, oferece-lhe duas salas na sua casa. Teresa enche-as de doentes. As antigas alunas vêm dos bairros ricos de Calcutá visitá-la. Levam-lhe arroz e algum dinheiro. Duas delas pedem-lhe que as deixe cuidar das crianças enquanto ela se ocupa dos doentes. “É tão belo não se sentir só! — escreve. — É belo poder oferecer aos doentes uma tigela de arroz, quente e reconfortante!”.
No dia 19 de Março, chega àqueles dois aposentos Shubashini Das, uma linda rapariga de 19 anos. Foi sua aluna e pertence a uma rica família católica. “Quero trabalhar contigo em favor dos pobres” — diz-lhe. “Mas não só durante algumas horas. Para sempre, como tu”.
Teresa procura desencorajá-la, falando-lhe das imensas dificuldades que irá encontrar. Das, porém, está irredutível. Deixa o belíssimo sari de seda, veste um de algodão branco como o de Teresa e fica. É ela a primeira a chamá-la “Madre Teresa”.
Depois dela, outras virão: cerca de novecentas.

No templo de Kalì

Um dia, numa viela lamacenta, Madre Teresa encontra uma mulher roída pelos ratos. Está quase a morrer. As duas salas da casa Gomes estão superlotadas, não há possibilidade de meter lá mais ninguém, nem esta pobre mulher que está quase a morrer. Madre Teresa carrega com ela nos braços e leva-a ao hospital mais próximo. Não a aceitam, “não há lugar”. Enquanto se dirige a outro hospital mais distante, a mulher morre-lhe nos braços.
Madre Teresa não se dá por vencida. Tem de encontrar um lugar espaçoso para hospedar todos aqueles que estão a morrer de fome, para doenças que não são mortais mas que matam os mais fracos, para as terríveis chagas que a falta de alimento e de higiene abrem nos corpos.
Não muito longe dali, ergue as suas cúpulas e as suas grandes colunas o Kalìghat, templo da deusa Kalì, protectora de Calcutá. No recinto do templo, há duas salas enormes, destinadas a dormitório para os peregrinos que, no mês de Outubro, chegavam de todos os pontos da região. As duas salas, uma para os homens e a outra para as mulheres, estão vazias onze meses por ano. Madre Teresa pede, às autoridades da cidade, licença para poder utilizar as salas para recolher os moribundos. É um pedido muito arriscado, mas as autoridades, que estão fazendo todo o esforço para pôr um dique a tanta miséria na periferia, concedem-lhe a licença.
Os hindus fanáticos, logo que sabem do caso, organizam motins. “É uma contaminação do templo!”, dizem. “Uma freira católica que abre um asilo no recinto sagrado é uma profanação!”
“De acordo — respondem as autoridades. — Mandai vossa mãe ou vossa irmã a tratar dos moribundos e dos leprosos para o lugar da Madre Teresa, e nós mandá-la-emos embora”. É claro que ninguém se apresentou. E a Irmã foi deixada em paz.

Um brâmane vestido de garça

O jornalista Francisco Rosso, que foi visitar o templo de Kalì e o asilo da Madre Teresa, escreveu:
“Entre casas arruinadas, o templo de Kalì, deusa da destruição, eleva-se, terrível, sobre as multidões exaltadas, sobre os desprezados que correm a aplacar a deusa malvada com ofertas de flores, dinheiro e sangue. Kalì zomba do alto da sua estátua, toda negra, com horrorosos olhos brancos e língua vermelha, disposta a sugar o sangue dos sacrifícios que lhe são oferecidos. Todas as manhãs, um cabrito negro é levado à força até ao templo, um sacerdote encaixa-lhe a cabeça numa picota e degola-o. Parte do sangue, recolhido num recipiente, é levado em procissão até à estátua da deusa... Mulheres, vestidas com elegantíssimos saris e um enorme brilhante na narina direita, compravam colares de cor escarlate, velas de incenso, punhados de arroz que em seguida depunham diante da estátua de Kalì. Era meu guia um pequeno Brâmane vestido de garça, com os sinais cabalísticos da casta na testa: traços de gesso branco e estrias de bosta de vaca. Saí do templo agoniado pela náusea, fui procurar Madre Teresa na casa onde se refugiam os recusados da sociedade, homens e mulheres que, pelo menos, não morrem sem terem ouvido uma palavra de piedade, talvez a única em toda a sua desesperada existência.
“Madre Teresa não estava lá. Estava no convento que serve de quartel general na luta contra a fome e a lepra, em Lower Circular Road. Mas encontrei um engenheiro alemão, de Colónia, ainda jovem, que tinha deixado a sua brilhante carreira e tinha vindo para Calcutá. Quando o jornalista entrou, o jovem alemão estava inclinado sobre um homem mirrado pela fome e falava-lhe em voz baixa numa língua que o pobrezinho não compreendia. “Acabam de trazê-lo — disse — e ainda não tivemos tempo de lavá-lo, nem de vesti-lo. Não deve viver muito tempo”. Expirou poucos minutos depois. Não teve sequer energia para exalar o último suspiro.

“Por que o faz?”

“Eu olhava à minha volta, para aqueles pobres exangues — escreve Francisco Rosso —, oitenta homens e setenta mulheres, uns destruídos pela subnutrição, outros devorados pela lepra. Olhando para o jovem engenheiro, perguntei-lhe: «Por que o faz? Não tem medo da lepra?». «São Francisco beijou o leproso» — respondeu. «Eu apenas os trato».
“Fomos ao encontro da Madre Teresa no cinzento convento central. Daqui dirige novecentas irmãs e uma centena de “pequenos irmãos”. Entre outras coisas, controlam e tomam conta de oito mil leprosos, que continuam a ficar nos passeios de Calcutá, com sulfamidas e vitaminas. “O difícil é tomar conta deles” — diz um dos pequenos irmãos. “Mudam de um passeio para o outro, e os tratamentos tomam-se ocasionais, portanto, infrutíferos”. “É uma gota de água no mar o que fazemos”, diz Madre Teresa. “Pense que só em Calcutá há sessenta mil leprosos e quatro milhões na Índia”.
Ao Nirmal Hriday não se vai só para morrer. Desde a sua abertura, em 1972, já foram hospitalizados 27 mil moribundos; 14 mil foram salvos e puderam, apesar de tudo, retomar a vida.
Num dia de calor tórrido e sufocante de Maio — conta Maria Dainotti — é levada, de ambulância, ao Nirmal, uma mulher, reduzida a um pequeno montão informe e malcheiroso. Madre Teresa levanta aquele corpo descarnado, mais semelhante a uma radiografia do que a uma pessoa. As chagas abertas narram bem uma longa história de sofrimentos. Enquanto lava delicadamente todo o corpo com água e desinfectante, convida uma outra irmã a aplicar-lhe tónicos cardíacos, e uma terceira a trazer uma sopa morna. A mulher reanima-se, os olhos que fixa­vam o vazio retomam vida. Murmura:
— Por que fazes isto?
— Porque te quero bem — disse em voz baixa Madre Teresa.
A mulher, fazendo um grande esforço, pega-lhe na mão:
— Torna a dizê-lo.
— Quero-te bem! — repete com doçura.
— Torna a dizê-lo, torna a dizê-lo... A mulher aperta-lhe as mãos, puxa-as para si. Nos seus lábios aparece uma sombra de sorriso.

“Foi meu filho que me lançou”


Mas há outras chagas profundas que não se conseguem curar, nem sequer diminuir-lhes a dor.
Duas irmãs da Madre Teresa, passando junto a uma montanha de lixo, ouvem um lamento quase contínuo. Abrem caminho através dos desperdícios e encontram uma velha deitada de bruços entre o lixo. Enquanto a transportam ao Nirmal Hriday o lamento continua, como uma débil buzina bloqueada. Somente depois de a terem reanimado e curado, o lamento se transforma numa cantilena de palavras cheias de desolação: “Foi o meu filho que me lançou para aqui”.
A Índia, que ama e respeita os animais, conta, cada ano, centenas de milhares de recém-nascidos e de velhos lançados nas lixeiras.
Nove décimos dos moribundos recolhidos pela Madre Teresa são “párias”, imundos e intocáveis. Na Índia, a religião hindu impôs a desumana divisão em “castas”. A casta mais baixa, os “párias”, é uma classe de gente infeliz e desprezível, destinada aos trabalhos mais repelentes. Os das castas superiores não lhes podem tocar nem mesmo com, o olhar. Gandhi lutou com jejuns extenuantes para que a sociedade indiana reabilitasse os “párias”, rebaptizados por ele “filhos de Deus”. Mas quase nada conseguiu.
Ao Nirmal Hriday, chegam um dia os estudantes de medicina da Universidade. Começam a servir e a medicar os miseráveis da Madre Teresa sem olhar a distinção de casta. Prometem voltar todos os sábados. Senhores de castas elevadas vêm, regularmente, a lavar as chagas dos moribundos. É uma coisa pequena. Mas, na Índia das castas, é um milagre.

Para mais uma criança


Metade da população indiana tem menos de 17 anos. As crianças, na Índia, são multidões, encontram-se por toda a parte, como as formigas. Hillary, o conquistador do Everest, escreve: “Chegados à Índia, viajámos dias e dias de comboio. Dúzias de crianças, carregadas de sacos de arroz, viajavam connosco sem bilhete. Iam agarrados da parte de fora do comboio, apertados sobre os tejadilhos e até sob as carruagens. Em cada paragem, a polícia afasta-os a golpe de bastão, mas, por cada criança afastada, outras duas subiam nas costas dos polícias. Com surpreendente coragem, estas crianças permaneciam agarradas no exterior das carruagens quase 80 quilómetros de percurso sem paragens. Fizemos entrar algumas para dentro da carruagem; aí se sentavam no pavimento com tão paciente resignação que me chocou. Quando se chegava às aldeias, as crianças esgueiravam-se logo para se defenderem das bastonadas dos polícias que esperavam a chegada do comboio”.
Logo que pôde dispor de algumas colaboradoras, Madre Teresa abriu centros de assistência primária para as crianças. Eram asilos, escolas elementares dotadas de poucos meios mas suficientes: pequenas casas em terra batida, cabanas com tecto de folhas de palmeira, às vezes apenas uma simples árvore para se poderem sentar à sombra dos seus ramos.
Depois, surgem as “Shishu Bhavans” (cidade das crianças) para as crianças doentes, os recém-nascidos lançados para a lixeira, os doentes mentais. “Até agora não recusamos nenhum — diz. — Há sempre uma caminha pronta para mais uma criança”.

Uma lampadazinha para aquecer os recém-nascidos


Pensa-se também nas incubadoras, necessárias para as crianças nascidas prematuras e lançadas fora como lixo. Não há dinheiro para as modernas máquinas médicas, niqueladas e assépticas, e as primeiras incubadoras são toscas caixas de madeira. Nelas são colocados cinco recém-nascidos, lado a lado. Uma redezinha serve para ventilação, uma lampadazinha acesa, e apagada oportunamente, mantém a temperatura constante. Mais tarde, um artesão chinês ofereceu-se para arranjar uma coisa mais funcional.
As vitaminas, as glucoses e o leite de cabra vão enchendo aquelas faces desnutridas. E o amor das irmãs ajuda-as a sorrir. Quem visita a “Shishu Bhavans” fica impressionado com a algazarra festiva que as crianças fazem nos corredores. Tomam o visitante pela mão, abraçam-no, convidam-no a correr e a brincar com elas. Uma mulher, que passava no corredor, fez uma carícia a uma criança muito pequenina que estava a comer; e ela, enchendo a mão de arroz, estendeu-a para a senhora, com um sorriso.

Os pequeninos colaboradores dos ladrões


“Um dia — conta Madre Teresa — veio ter comigo um polícia com uns rapazitos dos seus dez/onze anos que tinham sido apanhados a roubar nas proximidades da estação de Howrah. Aquele polícia era uma pessoa boa e hesitava metê-los na prisão: em contacto com os criminosos, arruinar-se-iam para sempre. Perguntou-me se eu podia tomar conta deles.
Falei um pouco com aqueles rapazes e descobri que faziam de receptadores e colaboradores de uma quadrilha de ladrões que, em troca, lhes dava todos os dias uma boa refeição. Propus: “E se eu vos desse todos os dias uma boa sopa quente, e mais qualquer coisa, deixaríeis essa quadrilha?.
“Olharam-me indecisos. O que os convenceu, provavelmente, não foi a sopa, mas o interesse e o afecto que demonstrava por eles. Vieram comigo”. Madre Teresa procurou para eles uma casa, o alimento necessário e organizou uma escola. Depois, um rico hindu doou outras casas e agora os rapazes, paupérrimos, que as irmãs da Madre Teresa alimentam e preparam para a vida, são 2.500.
À medida que crescem, Madre Teresa arranja-lhes um trabalho. Para as raparigas, procura arranjar um modesto dote que as ajude a encontrar um marido.
Um dia, enquanto caminhava por uma rua de Calcutá, juntamente com a senhora Ann Blaikie, um jovem hindu deitou-se-lhe aos pés e beijou-lhos. Madre Teresa levantou-o rapidamente, reconheceu-o e abraçou-o. Uns anos antes, aquele rapaz tinha sido levado, moribundo, para o Nirmal Hriday. A tuberculose e a fome crónica tinham-no prostrado. Trataram-no com amor e salvaram-no. O rapaz frequentou a escola e Madre Teresa tratou de arranjar-lhe o necessário para que tivesse um modesto ofício, engraxador. Agora, aquele rapaz tinha conseguido uma boa posição, estava para casar e sentia-se feliz por poder abraçar a sua benfeitora.
“Isto é maravilhoso! — sussurrou Madre Teresa à senhora Blaikie. — É pena que, tantas vezes, não aconteça assim”. O desemprego é uma doença tão grande na sociedade indiana que, muitas vezes, os rapazes recolhidos e curados pela Madre Teresa voltam a cair na maior miséria. “Nós somos uma gota de água no oceano — diz com seriedade a pequena Irmã. — Fazemos o que podemos mas é pouquíssimo em relação àquilo que deveríamos fazer todos em conjunto”.

O quarto voto

Todos os religiosos da Igreja católica fazem a Deus três votos: de viver em castidade, de ser pobres e de obedecer aos seus superiores. As irmãs da Madre Teresa acrescentam um quarto: dedicar-se única e completamente à ajuda e à salvação dos pobres.
“Nós não aceitamos presentes daqueles a quem vamos visitar — diz com energia Madre Teresa, — nem sequer uma fatia de pão. Porque os verdadeiros pobres não a podem dividir connosco. Cada uma das irmãs tem um prato de esmalte no qual come, uma colher, dois saris de pouco valor (um dos quais é lavado todos os dias), um par de sandálias e um colchão. Nada mais. A nossa casa são as casas dos pobres e as ruas onde morrem os esfomeados. O convento serve-nos apenas para repousar algumas horas e rezar. Porque temos necessidade de rezar. Sem a força da oração a nossa vida é insuportável”.
Se lhe perguntardes: “Onde arranja o dinheiro de que precisa?”, Madre Teresa sorri e mostra o último pacote de cartas recebidas da Europa. Escrevem-lhe de todo o mundo e mandam-lhe ajudas. Os alunos ingleses enviam-lhe pão, os dinamarqueses leite, os alemães vitaminas. Ela resume tudo em três palavras: “Deus ajuda-nos”.
E que seja Deus a intervir, demonstram-no acontecimentos estranhos que perturbam o nosso espírito ocidental de “planificadores”. Acontecimentos que se lêem também nas crónicas do Cottolengo de Turim.
“Estava para chegar uma postulante — conta com simplicidade Madre Tere­sa — e não havia um colchão para ela em todo o convento. Tínhamos o forro, mas não tínhamos nada com que enchê-lo. Estava a descoser a minha almofada para lhe tirar o algodão e usá-lo, quando toca a campainha da entrada. Vou abrir. É um inglês com uma almofada debaixo do braço: “Estou para deixar Calcutá — disse — e pensei que talvez vos pudesse servir”. Ajudo-o a tirar de dentro do carro um colchão muito cheio, pesado, que servirá para encher pelo menos quatro dos nossos pequenos colchões vazios”. No centro de assistência, em Calcutá, um dia foram recebidos mais vinte rapazes. Ao almoço, o seu enorme apetite acabou com o arroz da casa. Não há mais nada para a refeição da tarde. É hora de acender o fogão, mas que se vai meter na panela? Madre Teresa sorri. Talvez pense nas palavras que, em circunstâncias semelhantes, dizia o Cottolengo: “Agora se verá se a casa é minha ou é da Providência”. Pela porta, entram três pessoas: uma mulher e dois homens curvados sob o peso de dois sacos. Aquela mulher, desconhecida, dirige-se à primeira irmã que encontra: “Pensei em trazer-vos um pouco de arroz. Quereis aceitá-lo?”.
Setembro 1963. Em Agra, as irmãs da Madre Teresa abriram um outro “centro de caridade”. Lá de longe, uma irmã telefona em termos dramáticos:
— Temos de abrir a todo custo uma casa para as crianças abandonadas. Nesta zona, morrem às dezenas todos os dias.
— E quanto é preciso para abri-la?
— Podemos construí-la com 50 mil rupias (cerca de quatrocentos mil escudos).
— Compreendo muito bem, irmã — murmura Madre Teresa. — Mas eu não sei onde ir buscar cinquenta mil rupias.
Poucos minutos depois, o telefone toca de novo. É da redacção de um jornal diário de Calcutá. Comunicam à Madre Teresa que o governo das Filipinas lhe tinha concedido o prémio Magsaysay, que a reconhece como a “mulher mais benemérita da Ásia”. Teresa não faz a mais pequena ideia do que seja aquele prémio. Pergunta:
— Trata-se de dinheiro?
— Sim, cerca de 50 mil rupias.
O redactor do jornal fica estupefacto quando ouve a Irmã murmurar ao microfone:
— Então sempre é verdade que Deus quer a casa para as crianças abandonadas de Agra.

Alegria para os pobres


Quando uma rapariga pede para se juntar à família da Madre Teresa, a preparação é dura e avança por graus. Durante seis meses, a “postulante” vai observando o trabalho que a espera, e é observada para ver se nela existem sinais de uma autêntica vocação.
Perguntaram à Madre Teresa quais eram estes “sinais” que ela queria ver em cada “missionária da caridade”. Respondeu: “Saúde de mente e de corpo. Capacidade de aprender. Uma grande dose de bom senso. Um carácter alegre”.
Insiste sobre a necessidade da alegria: “A alegria do Senhor é a nossa força, como está escrito na Bíblia. Por isso, não temos razão para nos sentirmos tristes e infelizes, mas temos muitos motivos para sermos felizes e levar esta alegria ao mundo. Todos nós, se temos Jesus connosco, devemos levar a alegria ao mundo”. A uma irmã que lhe pedia um dia para ir para as barracas dos pobres, mas que se apresentava de rosto triste, respondeu: “Não vai. Volte para a cama. Não se pode ir ao encontro dos pobres com a cara triste”.
Depois, refere a qualidade base, que toda a missionária da caridade deve possuir em grau absoluto: a capacidade de amar a Deus nos pobres. “Os pobres são a nossa oração — diz; — neles está Deus e nós encontramo-lo neles. A oração é fazer tudo por Cristo, rezar em qualquer lugar, rezar no trabalho. Começamos cada dia com a Santa Missa e a Comunhão, e terminamo-lo com uma hora de adoração ao Santíssimo. Nós procuramos descobrir Cristo nas aparências do pão da Eucaristia e, ao longo do dia, conti­nuamos a vê-lo nas aparências dos corpos desfeitos dos nossos pobres.
“Que consolações teríamos se isto se não realizasse nas nossas vidas? Nós encontramos o Senhor que tem fome e sede: esta é a grandíssima consolação de uma irmã. Isto enche a nossa vida”.

A Irmã com bigodes postiços

Nos meses de preparação, a postulante aprende o inglês e faz uma séria aprendizagem no campo médico-sociológico.
O dia em que uma nova irmã pronuncia os quatro votos, é dia de festa. Uma irmãzinha confiou ao microfone de um jornalista: “Vós não fazeis festa quando um de vós acaba um Curso? Para nós, este dia representa muito mais: fazer os votos quer dizer seguir a Cristo mais de perto, juntamente com a Madre Teresa. Nesse dia, cantamos e dançamos. Ouviu a voz da irmã Josefina: era professora de música antes de vir para nós e toca o piano maravilhosamente. Pois bem, algumas de nós pintam-se e colocam uns grandes bigodes postiços, tocamos tam­bor nas caixas da carne congelada...”
A casa central das irmãs é o número 54A de Lower Circular Road, em Calcutá. Foi um muçulmano que a ofereceu à Madre Teresa.
— Quanto queres pela casa? — perguntou-lhe a Irmã.
— Quero que tu habites esta casa com as tuas filhas. Se aceitas, a casa é tua.
Quem quiser entrar, puxa pela corda de uma sineta. No pequeno pátio, ladra um cão manso e brincalhão, também ele salvo de um lamaçal para onde tinha sido atirado para morrer. Para encontrar as irmãs, normalmente, tem de se ir à capela: uma sala pobre, sem bancos, com esteiras nas quais se podem acocorar à oriental. Na parede do fundo, sobre o altar, um grande e escuro crucifixo, com uma inscrição a caracteres brancos: “I THIRST!” (Tenho sede).
Na capela, alternam-se, por grupos, as irmãs que residem em Calcutá. Cada grupo dedica um dia por semana à meditação. Os livros de oração são escritos à máquina “porque os livros são caros”.

A oração da Madre Teresa


Terminada a meditação, todas recitam em coro uma oração que aprenderam com a Madre Teresa:


“Tornai-nos dignas, Senhor, de servir os nossos semelhantes que morrem de miséria e de fome em todo o mundo.
Dai-lhes hoje, por meio das nossas mãos, o pão de cada dia e dai-lhes alegria e paz através do nosso amor inteligente.
Faz de mim, Senhor, um instrumento da tua paz, para que onde reina o ódio, eu leve amor;
Onde há a maldade, eu leve o espírito do perdão;
Onde há discórdia, eu leve a harmonia;
Onde há erro, eu leve a verdade;
Onde há dúvida, eu leve a fé;
Onde há desespero, eu leve a esperança;
Onde há trevas, eu leve a luz;
Onde há tristeza, eu leve a alegria.
Senhor, concede-me que eu procure mais consolar que ser consolada; Compreender mais que ser compreendida;
Amar mais que ser amada;
Porque é esquecendo-se de si própria que cada qual se encontra;
E morrendo que se acorda para a vida eterna.
Amen”.

Onde a lepra é de casa


A norte de Calcutá, perto da cidade de Asansol, ergue-se a obra mais querida da Madre Teresa. Chama-se Shanti Nagar, Cidade de Paz. É uma verdadeira cidadezinha, com casas, piscina, jardins, escolas. Ali habitam duas mil pessoas. Há apenas uma diferença em relação às outras pequenas cidades: aqui, os habitantes são leprosos.
Esta doença tão antiga suscitou sempre repulsa. Mesmo quando a ciência demonstrou que a lepra é menos contagiosa que as outras doenças, o leproso continua a ser marginalizado, com violência, pela sociedade.
O bacilo da lepra não ataca órgãos vitais, mas corrói a pele, apodrece os dedos, transforma o rosto numa máscara trágica. O leproso, além de ser um doente, sente-se aviltado, desprezado, humilhado.
Madre Teresa pensou: “Farei uma cidade só para eles, onde ninguém os humilhará. Lá procuraremos curá-los com os remédios mais modernos, inventados pela ciência — as sulfamidas. Não são muito caros, são fáceis de administrar e o efeito é seguro, se o tratamento for prolongado e constante”.
O terreno para a “Cidade da Paz” (17 hectares) deu-lho o rico hindu que comprou o Lincoln branco do Papa. O resto do dinheiro serviu para começar a construção das casas.
Hoje, a “cidade” é habitada por quatrocentas famílias de leprosos. Têm à sua disposição médicos e enfermeiros fixos. Foram escavados catorze poços, que fornecem água de nascente às casas e ao hospital. As escolas, bibliotecas, oficinas de tipografia, mecânica, marcenaria, fábricas de calçado, fiação e cestaria funcionam em pleno. Jardins, hortas, pomares, arrozais e aviários tornam a cidade praticamente auto-suficiente.
A toda a volta, um grande parque circunda de verde e de paz a cidade.
Não é um “grande convento governado por irmãs, mas uma pequena aldeia indiana” que se governa por si própria, segundo os antigos costumes da Índia: todos elegem os próprios representantes, escolhendo-os entre os mais velhos.
Os leprosos que se curam voltam para a sociedade com um emprego que lhes dá boas perspectivas de sustentar a sua família.

O prémio “João XXIII”

Quando a construção se encontrava quase a meio, os dinheiros recebidos da venda do Lincoln do Papa tinham acabado. Estávamos em finais de 1970. No dia 22 de Dezembro, o Papa Paulo VI anunciou que, pela primeira vez, seria atribuído o prémio internacional “João XXIII”: “atribuímos este prémio a uma religiosa muito modesta e silenciosa, mas bem conhecida por aqueles que estão atentos e admiram os heroísmos da caridade no mundo dos pobres: chama-se Madre Teresa. De há vinte anos para cá, nas ruas da Índia, vem desenvolvendo uma obra maravilhosa de amor e dedicação em favor dos leprosos, dos velhos e das crianças abandonadas. Propomos à admiração de todos esta intrépida mensageira do amor de Cristo”.
Madre Teresa foi a Roma, no dia 6 de Janeiro de 1971, e recebeu das mãos do Papa uma imagem de Jesus e um cheque de quinze milhões de escudos. O diploma, que documentava a atribuição do prémio, dizia assim: “É belo e significativo que nesta nossa civilização de consumo o prémio da paz seja dado a quem se consagra aos seres mais inúteis e improdutivos da humanidade: os leprosos, os moribundos, os diminuídos”.
Os quinze milhões, fechados num envelope azul que o Papa lhe deu, chegaram para concluir Shanti Nagar, a cidade dos leprosos.

O silencioso e rápido desenvolvimento

A obra da Madre Teresa tem já 29 anos de vida na Índia. 29 anos desde aquele dia em que tirou o hábito religioso da sua congregação, vestiu o sari branco e começou a juntar as primeiras crianças abandonadas nas ruas. A sua obra estendeu-se rápida e silenciosamente por todo o mundo. Deitemos um rápido olhar a este desenvolvimento.
Em Calcutá, foram abertos 59 centros de caridade. Na Índia, funcionam outras 30 obras de assistência aos mais pobres. Como prova de reconhecimento, o governo indiano conferiu-lhe uma medalha de ouro — a Padmashri Medal. Madre Teresa pô-la ao pescoço de uma pequena estátua da Virgem Maria, que se ergue numa parede do Nirmal Hriday.
1965. Um pequeno grupo de irmãs, guiadas pela Madre Teresa, abre uma obra na Venezuela, na América Latina. Ao sul de Caracas, a região de Yaracuy é habitada por descendentes de escravos africanos, mergulhados numa apatia e pobreza que dilaceram o coração. “Pelos caminhos poeirentos das aldeias — escreve Maria Dainotti — grupos indiferentes passam as horas fumando e bebendo; as crianças, sujas, esgravatam com as galinhas entre os detritos ou misturam-se entre os cães vadios e cabras negras, enquanto nas cabanas todas sujas, reino de maus cheiros e de desordens, as mulheres passam o tempo tagarelando”. As Missionárias da Caridade ajudam as mulheres em casa, ensinam a fazer pequenos trabalhos caseiros, ensinam a coser à máquina, tratam os doentes, procuram interessar as crianças pelos jogos. 1967. O governo budista da ilha de Ceilão expulsou, há mais de 20 anos, quase todos os missionários católicos. Agora, pede à Madre Teresa que envie para aquela ilha as suas irmãs, para que construam dispensários para os mais pobres, organizem clínicas móveis, abram casas para as crianças abandonadas.
Madre Teresa chega à capital da ilha com um pequeno grupo de missionárias. A suprema autoridade da ilha recebe-a à chegada, aperta-lhe as mãos e diz-lhe: “Nós trabalhamos para o mesmo Deus. Atrás do nosso templo existem alguns barracões que não nos servem para nada. Usai-os para o vosso primeiro dispensário e peço-vos que me considereis, aqui na cidade, o primeiro entre os vossos cooperadores”.

Missionárias em Roma

1968. Vindas de Calcutá, chegam à Tanzânia a irmã Shanti e sete missionárias, pedidas pelo Bispo de Tabora à Madre Teresa, para que se ocupem dos pobres acampados nos arredores da cidade. Dez anos depois, nos subúrbios da cidade de Tabora dirigem seis dispensários (a irmã Shanti é licenciada em medicina), ajudam os leprosos e os cegos a construir cabanas à sua volta. Sete jovens tanzanianas vestiram já o mesmo sari das irmãs indianas.
Entretanto, nascem os “Irmãos Missionários da Caridade”, que são já uma centena. Orienta-os o padre Andrea, um jesuíta que recebeu também ele licença para deixar o seu convento na Austrália, para se dedicar aos mais pobres. Os “Irmãos” apoiam a obra das missionárias e executam os trabalhos mais duros e pesados.
Em 1969, as missionárias abrem um centro em Bourke, na Austrália, entre as tribos aborígenas. Em 1970, surgem casas em Melbourne (Austrália), em Amman (Jordânia), em Londres e em Roma. Na capital da cristandade, onde vivem 22 mil irmãs de 1200 ordens diversas, estão, a pedido de Paulo VI, no bairro das barracas do Aqueduto Felice.
Vão passando de casebre em casebre, visitando velhos e doentes, fazem-lhes os curativos, arrumam ambientes, ocupam-se dos mais pequeninos que ainda não são aceites nos asilos, cozinham para as famílias cujas mães estão ausentes por motivo de trabalho.

Ciclone de fogo no Bangla Desh

Março de 1971. A tragédia abate-se de improviso sobre o Bangla Desh (o Paquistão Oriental que confina com a Índia, a poucos quilómetros de Calcutá). Como os seus habitantes exigiram a separação política do Paquistão Ocidental e a independência, os soldados desencadeiam uma repressão com um massacre horrível... O terror da carnificina leva as pessoas a fugir.
Abril, Maio, Junho 1971. Começa o horroroso êxodo. Perseguidas pelas tropas paquistanesas que disparam à queima-roupa, as populações do Bangla Desh fogem para as florestas e para os pântanos. O seu fim é alcançar a fronteira e pôr-se a salvo na Índia. O governo indiano pede ajuda internacional e organiza campos para os refugiados. Estes atingem a cifra de nove milhões. Os campos transformam-se em enormes formigueiros. A cólera alastra.
Outubro, Novembro 1971. Chegam os ventos ciclónicos e as chuvas torrenciais. A situação torna-se cada vez mais trágica.
Dezembro 1971. Para desbloquear a situação na única direcção possível (derrubar o governo paquistanês e declarar a independência do Bangla Desh), a Índia declara guerra ao Paquistão. Multidões de bengalis, horrorizadas pela situação, fogem espavoridas. Vagueiam pelos pântanos, atravessam florestas espessas e insidiosas. Levam consigo, ao colo, as crianças que tremem de febre, os velhos e os doentes. Dormem no chão, comem raízes, sempre com medo de se encontrarem com alguma patrulha de soldados paquistaneses que os liquidariam a todos.
“Calcutá — afirma um médico naqueles dias — está a rebentar, literalmente falando, sob a pressão de oito milhões de pessoas.
Falta a água na cidade. A maior parte dos habitantes sofre de desnutrição. Faltam estruturas hospitalares. Se entrarem na cidade mais dois ou três milhões de fugitivos, será o fim. Quem se poderá salvar das epidemias?”.
“Visitei dezenas de campos de refugiados — escreve um enviado especial. — São todos iguais, montados por vezes em terrenos alagados pela chuvas acompanhadas de ventos ciclónicos. Tendas de todo o tipo, cabanas e barracas. As famílias vão morrendo no meio da lama, da humidade e da promiscuidade. Por todos os lados o espectáculo é o mesmo: crianças nuas devoradas pelas moscas e pelos mosquitos, pequenos regatos de líquidos amarelos e pestilentos, pequenos fogos acesos pelas mulheres com o fumo acre que seca a garganta, pessoas acocoradas nas fossas, os urros, as rixas, o nojo, os rostos desesperados, os corpos esqueléticos”.

De novo o êxodo por entre os campos minados

Felizmente, a guerra dura apenas catorze dias. O Paquistão é derrotado. É proclamada a independência do Bangla Desh. Inicia-se o êxodo ao contrário, igualmente incómodo, igualmente trágico, mas mantido pela esperança de “voltar a casa”. Nove milhões de pessoas caminham através dos campos, pelas estradas, pelos atalhos. Os enormes problemas de assistência transferem-se para o território do Bangla Desh incendiado e devastado, semeado de minas.
As irmãs da Madre Teresa sentem-se submersas neste mar de sofrimento. Trabalharam até ao esgotamento, andando de campo em campo, recolhendo, ao longo dos caminhos, os extenuados, as crianças perdidas e quase enlouquecidas no caos geral. O governo reconhece a sua acção com a atribuição do “Prémio Nerhu”. O documento diz: “Madre Teresa deu ao mundo uma das mais surpreendentes provas de caridade, inspirando um grande número de pessoas a dedicar-se ao serviço dos pobres, dos abandonados e dos fracos”. Agora é o Bangla Desh a chamá-las, com urgência. Para socorrer, de qualquer maneira, a massa de refugiados que regressa, o governo chama as Missionárias da Caridade para seis cidades-chave. E elas vão. Abrem, em pouco tempo, uma vintena de obras, pobres mas funcionais: dispensários médicos, asilos para crianças órfãs ou abandonadas, casas para os moribundos, institutos para os mutilados pelo rebentamento de minas.

Os pobres do Ocidente


1972. As Missionárias da Caridade entram no Yemen a pedido do governo (há anos que o Yemen não admite a presença dos cristãos). Abrem uma casa no bairro de Ballymurphy, em Belfast (Irlanda do norte), palco de uma guerrilha impiedosa entre protestantes e católicos. Vão também habitar em Harlem, no bairro negro de New York, entre os viciados e drogados. É aqui que a Madre Teresa descobre doenças mais terríveis ainda do que a lepra e a fome, que estão minando o nosso farto mundo ocidental. “Na Índia — disse — nós temos casas para os moribundos privados de tudo. Mas, na Europa e na América, encontramos gente ainda mais pobre: os não-amados, os não-queridos, os não-confortados. Hoje no mundo, a doença mais grave não é a lepra mas a solidão, o não sentir-se amado por ninguém. É esta a doença mais grave”. Em 1973, a Madre Teresa abriu cinco novas casas na Índia, e fundou centros de assistência em Óstia, Palermo, Addis Abeba, Taiz (Yemen), Lima (Peru), Gaza (Israel), Katherine (Austrália), Saigão (Vietname).
As suas irmãs, ao terminar o ano de 1975, eram 870.

A dança do menino


Há um episódio, na vida da Madre Teresa, que perturba muita gente e faz pensar. Talvez seja um dos episódios-chave para compreender esta figura.
Passou-se na estação de Howrad, em Calcutá. Perto da meia-noite, quando os comboios ficam parados durante algumas horas, chegou uma família muito pobre que costumava vir dormir na estação. Eram mãe e quatro filhos, dos cinco aos onze anos. A mãe apresenta-se num estado burlesco, pequena, vestida com um sari branco de algodão, demasiado frio para uma noite fria de Novembro, com os cabelos cortados a zero, coisa estranha para uma mulher. Levava consigo recipientes de lata, alguns farrapos e pedaços de pão, tudo o que possuía para si e para os seus filhos. Eram pedintes. A estação era a sua casa.
As crianças, três meninas e um menino, o mais pequeno, eram todas como a mãe, cheias de vivacidade. Àquela hora, em plena noite, sentaram-se todos num dos passeios da estação, junto à linha do comboio, pertinho de muitas outras famílias e mendigos solitários que já dormiam à sua volta. Tomaram a sua refeição da noite, de pão seco, provavelmente o que tinha sobrado de algum revendedor e que, ao cair da tarde, lho tinha cedido por um preço irrisório... Mas não foi uma ceia triste. Eles falavam, riam e diziam graças. Seria difícil encontrar uma família mais feliz do que aquela.
Quando acabaram a mísera ceia, dirigiram-se todos a uma torneira, com muita alegria; lavaram-se, beberam e lavaram também os recipientes de lata. Depois, desdobraram com cuidado os seus trapos, para dormirem juntos, e um pedaço de lençol para se cobrirem.
E foi então que o mais pequenino fez qualquer coisa absolutamente maravilhosa: pôs-se a dançar.
Saltava e ria entre as linhas do comboio; ria e cantava docemente, com irresistível alegria.
Que dança aquela, em tão absoluta miséria!
Madre Teresa já disse várias vezes que para nós, ocidentais, tristes no meio da nossa riqueza, encerrados dentro das nossas luxuosas vivendas, o pobre é um “profeta”. Mesmo na miséria em que a nossa habilidosa economia os marginalizou, eles dão-nos lições de valores que nós já esquecemos: o amor para com os outros, a alegria que provém das pequenas coisas, a amizade, a capacidade de entusiasmar-se por alguma coisa.
“Nós ajudamo-lo a sair da miséria. Mas ele dá-nos alguma coisa mais: ensina-nos uma maneira diferente de viver: servir-se das coisas, mas não tornar-se prisioneiros delas; acreditar que há valores bem mais preciosos que o dinheiro: o amor, o calor da família, o sorriso das crianças, a amizade, a alegria...”.

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