terça-feira, 26 de junho de 2007

Alberto Schweitzer

Terésio Bosco
Alberto Schweitzer
Porto, Edições Salesianas, 1990


“Ao observarmos a sociedade contemporânea, uma coisa nos impressiona: discutimos mas não fazemos progressos. Porque os povos não confiam uns nos outros”.
“Os homens querem chegar à lua, mas não vêm as flores que desabrocham a seus pés”.
“Assim como a luz branca é a resultante de raios coloridos, assim o respeito pela vida supõe todas as componentes da ética: amor, benevolência, simpatia, empatia, paz, capacidade de perdoar”.
“O homem não pode viver para si. Devemos tomar consciência de que toda a vida é preciosa e que estamos unidos a todas as formas de vida”.

Alberto Schweitzer
Ao saírem da escola, dançavam no ar os primeiros flocos de neve. O espectáculo provocou uma alegria esfuziante naquela multidão de estudantes, que se atropelavam e envolviam em lutas rumorosas, acaloradas e felizes. Só um se mantinha à parte: Alberto.
Há três anos que frequentava a escola, mas era sempre posto de lado. Porquê? Por ter pouca vida, mas sobretudo por ser o filho do pastor, isto é, um “fidalguete”, e vestir melhor que todos os filhos dos camponeses. Aquele cerco de solidão enchia de amargura o coração de Alberto. Naquele dia, vencido pela alegria da neve a esvoaçar, decidiu acabar com esse isolamento. Aproximou-se de George Nitschelm, um latagão de rosto rubicundo e forte musculatura. Apesar disso, pondo a pasta no chão Alberto disse-lhe:
— Vamos à luta. Tenho a certeza que te venço.
Aquelas palavras eram uma declaração de guerra. Mas Alberto não sabia o que era a guerra nem tão-pouco como se declarava: dizia aquilo com um sorriso aberto e cordial, olhos luminosos e serenos, como se tivesse convidado Jorge a comer bolos. Jorge aceitou a guerra. Desatou numa gritaria triunfante como se há muito tempo esperasse aquela ocasião; cuspiu nas mãos, e dirigindo um olhar significativo aos colegas que se aglomeravam em volta deles gritou:
— Vamos a isso, meu anjinho. E prepara-te para o que der e vier!
Alberto olhou para ele desolado, pois o que desejava era apenas um encontro de amigos. Jorge pelo contrário queria a guerra total. Mas Alberto não podia continuar a viver à margem. E embora a contragosto lançou-se, de cabeça em riste. Era por demais evidente que Alberto, um barra em aritmética, de luta livre não percebia nada. Caiu por terra duas ou três vezes com as fintas e as rasteiras de Jorge. Em volta deles os companheiros gritavam de entusiasmo. Mas o pálido “fidalguete”, com as lágrimas nos olhos, a cada passo voltava a cair. Para ele, agora era uma questão de vida ou de morte. Finalmente, evitando uma nova rasteira, Alberto conseguiu deitar as mãos a Jorge. Agarraram-se fortemente, dentes cerrados pelo esforço, procurando cada qual dominar o adversário. Jorge nunca pensou que aqueles braços tão franzinhos tivessem tanta força. A certa altura começou a fraquejar. Não podia mais. A um novo esticão perdeu o equilíbrio, e caiu de costas. Alberto, olhando-o, lançou-se sobre ele. No seu rosto tinha aparecido de novo o sorriso cordial, e agora estendia a mão ao “inimigo” vencido, para ajudá-lo a levantar-se. Mas Jorge recusou. Levantou-se sozinho, e com lágrimas de raiva gritou-lhe:
— Se em minha casa houvesse a fartura que há na tua, havia de malhar-te até dar cabo de ti.
E desapareceu. Alberto sentiu-se atingido por aquelas palavras como se fossem pedradas. Olhou em volta. O silêncio dos colegas exprimia o mesmo pesar. Então, num repente, agarra na sacola e soluçando corre para casa. Não quis jantar: parecia-lhe ver os companheiros, sentados à volta das suas mesas sem nada para comer. Naquele dia tinha descoberto uma coisa que o enchia de amargura: a miséria.
No domingo seguinte, quando fosse à igreja com o seu pai para a reunião dos fiéis, Alberto devia vestir o sobretudo novo.
Pela primeira vez cedeu à teimosia: não quis. O pai tinha pressa e começava a perder a paciência:
— Então, acabas ou não acabas com esses caprichos?
— Mas eu não quero o sobretudo.
— É porque foi aproveitado do meu sobretudo velho?
— Não, papá, não é por isso.
— Então?
— Porque os meus colegas também o não têm.
— Essa é uma razão nobre. Mas eu sou o pastor, e não quero que as pessoas pensem que não tenho dinheiro para comprar um sobretudo ao meu filho. Veste-o.
Foi como se tivesse falado com as paredes.
— Então recusas obedecer ao teu pai?
— Eu não recuso obedecer-te, papá. É que eu não posso levar o sobretudo.
— Sabes então o que sou obrigado a dar-te?
— Sim.
Alberto apanhou então um tabefe, mas foi para a igreja sem o sobretudo, como os outros rapazes. Em todos os domingos daquele Inverno, mesmo que tivesse de apanhar de novo, Alberto não mudou de ideia. Mas o pai tinha compreendido a bondade do seu filho, e nos últimos domingos de Inverno o tabefe tinha-se transformado em carícia.
Ao chegar o Verão, Alberto acompanhou o pai pela primeira vez a Colmar. Caminhando por uma rua junto aos jardins públicos, a certa altura parou e apontou ao pai uma estátua. Era a “cabeça de um jovem negro” de Bartholdy, o autor da Estátua da Liberdade de Nova Iorque. Representava um negro forte e distinto, mas de olhos aterrorizados.
— Porque é que tem medo daquele negro, pai?
— É um negro do Gabão, o país mais pobre do mundo. Os que lá nascem são pessoas condenadas à miséria.

Um livrinho verde indica o caminho

Quando aos 14 anos Alberto Schweitzer abandonou Günsbach, a aldeia onde seu pai era pastor, para prosseguir os estudos em Mulhausen, manifestava já uma extraordinária vocação musical. Desde os nove anos que todos os domingos se sentava ao órgão da igreja para acompanhar as funções que o pai dirigia.
Em Mulhausen, quando os estudos liceais lhe deixavam algum tempo livre, Alberto dirigia-se para a igreja de Santo Estêvão e sentava-se ao órgão. Foi ali que descobriu Bach, o grande músico alemão que na primeira metade do século XVIII tinha oferecido ao mundo um rio caudaloso de música, que até então permanecera esquecida nas estantes das bibliotecas. Quando Alberto Schweitzer tocou no órgão de Santo Estêvão as primeiras peças daquele grande músico, Bach era quase desconhecido. Será ele, Schweitzer, que o dará a conhecer à Europa e ao mundo com os seus admiráveis concertos e com os seus livros.
Aos 18 anos inscreve-se na Universidade de Estrasburgo e simultaneamente inicia uma série de concertos de órgão na Alemanha, na França e na Espanha.
Aos 22 anos laureou-se em teologia pela Universidade de Estrasburgo. Um ano depois conseguiu a láurea em filosofia. Entretanto tinha-se tornado um dos organistas mais célebres da Europa. Vendia saúde e a sua força de vontade era enorme: conseguia brilhar nos estudos e dedicar várias horas por dia ao órgão, para preparar os concertos. Dormia três a quatro horas por noite, e apesar disso a sua capacidade intelectual era fora do comum. Um ano depois da sua segunda láurea, Schweitzer foi convidado a ficar na Universidade de Estrasburgo: professor universitário aos 24 anos.
Na manhã de Pentecostes, Alberto Schweitzer foi acordado pelo toque dos sinos.
“Imóvel, escutei aqueles sons juntamente com a voz da minha felicidade íntima — escreveu. — Os meus sonhos mais radiosos tinham-se concretizado. A vida abria-se maravilhosa diante de mim. Mas de repente o meu pensamento voltou-se para uma multidão de homens, homens sem conta que nada possuíam... Vieram-me à mente as palavras de Jorge Nitschelm: “Se em minha casa houvesse a fartura que há na tua...”, e as palavras do meu pai diante da estátua do negro: “a gente mais pobre e miserável do mundo...”. Dentro de mim ressoavam insistentes as palavras do Evangelho: “Àquele que muito recebeu muito será pedido... Recebestes de graça, pois dai de graça... Pregai a palavra... Curai os enfermos...”. Naquela manhã Alberto Schweitzer, com calma e lucidez, tomou uma decisão: continuaria a dedicar-se à ciência por mais seis anos. Depois deixaria tudo, e iria para um país miserável a fim de dedicar a vida aos seus irmãos mais desgraçados. Durante aqueles seis anos tomaria conhecimento do país onde a miséria fosse maior, e esse país seria a sua futura pátria. Era o dia de Pentecostes de 1899.
“Uma manhã de Outono (1904) — conta Schweitzer — encontrei sobre a minha mesa de trabalho um daqueles livrinhos de cor verde nos quais a Sociedade das Missões Evangélicas de Paris publicava os relatórios mensais das suas actividades. Pu-lo de lado para retomar o meu trabalho. Mas depois peguei nele e abri-o mecanicamente. O meu olhar caiu sobre um artigo intitulado: As necessidades das missões no Gabão. Aquela região era ali apresentada como “o ponto mais doentio do mundo”, e o director da Sociedade das Missões lamentava que a missão carecesse de homens para continuar a obra. Exprimia a esperança de que o seu apelo fosse ouvido pelos que “vivem sob o olhar do Senhor” e os levasse a ir trabalhar naquela obra urgente. O artigo terminava com estas palavras “Precisam-se homens que à chamada do patrão respondam generosamente: Senhor, aqui estou! Deus tem necessidade destes homens”. Terminada a leitura, recomecei com toda a tranquilidade o meu trabalho. Fiquei a saber naquele momento a que actividade dedicaria a minha vida.”


Um maço de cartas para começar desde o princípio

O professor Schweitzer estava noivo de Hélène Bresslau. Logo que pôde estar com ela, disse-lhe:
— Hélène, já encontrei a finalidade da minha vida: servir os negros do Gabão. Eles necessitam sobretudo de médico. Vou pôr de parte todas as outras ocupações para me inscrever na faculdade de medicina. Dentro de oito anos estarei apto para partir. Sentes-te com coragem de esperar por mim durante tanto tempo? E especialmente, sentes-te com coragem para vires sepultar-te comigo no meio das florestas? Eu não tenho direito de expor-te aos perigos e à miséria.
Hélène reflectiu um pouco, muito séria. Depois sorriu:
— Vou frequentar um curso de enfermagem — disse-lhe. — Assim sentir-te-ás mais ligado à tua Hélène.
No dia 13 de Outubro Alberto Schweitzer deitou na caixa do correio um maço de cartas. Em algumas delas anunciava aos parentes e amigos a decisão tomada. Noutras pedia a demissão da Universidade e de todos os outros encargos para poder iniciar os estudos de medicina.
Aquelas cartas tiveram o efeito de uma bomba. Em Paris, em Estrasburgo, na sua terra natal muitos pensaram que se tratava de uma loucura passageira. Escreveram-lhe cartas a lamentar a decisão, disseram-lhe claramente que o que tencionava fazer era o maior disparate da sua vida. “Nenhum deles pode compreender — escreveu entristecido Schweitzer — que a atitude de servir o próximo recomendada por Jesus possa levar alguém a mudar o rumo à sua vida. Todavia todos lêem o Evangelho, e todos acreditam em Jesus Cristo...”.
Mas Alberto Schweitzer, quando tomava calmamente uma decisão, não voltava atrás. Quando começaram os cursos de medicina, os estudantes do primeiro ano ficaram admirados de ver a seu lado alguém que até há pouco pertencia ao corpo de professores. Foram oito anos de trabalho aturado: seis para a láurea, um de trabalhos práticos no hospital, e outro em Paris, dedicado à medicina tropical. Neste último ano Schweitzer realizou também uma série de concertos. Nas catedrais de França, Espanha, Inglaterra, Alemanha foi aplaudido pelas admiráveis execuções de Bach. Com o dinheiro recebido encheu sessenta e nove caixotes de medicamentos. Depois casou com Hélène, e com ela partiu. Os amigos de Paris quiseram oferecer-lhe um piano.
— Assim lá longe não perderás o exercício. E se um dia te cansares da floresta, poderás voltar às nossas catedrais.
O piano estava revestido de fortes chapas de ferro para o defender das formigas brancas.


Pirogas no rio Ogové

Abril de 1913. Há cinco horas que o barco Alembe sobe o rio Ogové, na zona zero equatorial. Ao longe avistavam-se as colinas de Lambaréné, uma aldeia perdida do Gabão. A sereia do Alembe lança silvos prolongados. O pequeno vapor só atracará dentro de meia hora. Mas a sereia adverte os habitantes das fazendas das vizinhanças, para que cheguem a tempo com as pirogas para levantarem as encomendas e o correio.
Alberto Schweitzer, um homem robusto de 38 anos, está sentado no convés junto de Hélène, sua jovem esposa. Tem na cabeça um chapéu branco colonial, e toma uns breves apontamentos no seu bloco de notas: “Água e florestas primitivas... Parece sonhar... A floresta é uma muralha gigantesca donde emana um calor insuportável... Penso no comércio dos escravos que durante séculos despovoou estas regiões...”.
Da plataforma, onde atracou o Alembe, à estação missionária de Lambaréné à qual se dirigem os Schweitzer ainda era uma boa hora de piroga. “Não havia ningém a receber-nos — escreve Schweitzer. — Mas durante o desembarque (eram as quatro e o sol queimava), descubro de repente uma piroga comprida e estreita. É conduzida por jovens que cantam alegremente. Chega com a velocidade de uma flecha e gira à volta do vapor com tanta rapidez que, junto da amarra que prende o barco ao ancoradouro, o branco que vem a bordo mal tem tempo de se desviar para não ficar sem cabeça. O branco é o missionário protestante Christol, e os remadores são jovens da missão. Logo atrás aparece também, muito veloz, a piroga com o missionário Ellenberger. Esta é conduzida por adultos. Entraram num desafio de velocidade, e os mais novos, por terem vencido, troçam agora dos “mais velhos”. Os vencedores têm direito de transportar o doutor e a mulher, os outros encarregam-se da bagagem. Esplêndidos rapazes! — O começo da viagem em piroga atrapalha-nos um pouco. Estas embarcações estreitíssimas são escavadas num único tronco de árvore, e perdem o equilíbrio ao mínimo movimento. Os remadores remam de pé, o que de maneira nenhuma favorece a estabilidade. Fustigam a água com as longas pás e cantam num ritmo veloz. Se algum deles perde o lance, vamos todos ao charco... Meia hora depois o nosso medo tinha desaparecido, e podíamos dizer que a travessia fora agradável. Os rapazes fazem um desafio de velocidade com o pequeno vapor, e por pouco não fazem virar uma piroga ocupada por três velhas indígenas, que nos gritam imprecações num dificílimo dialecto gutural...”.
Já na missão, Alberto e Hélène são recebidos com grandes grinaldas de flores e de ramos de palmeira, e apertam dezenas de mãos negras. Depois sobem à sua pequena casa situada na colina: uma construção em madeira assente numa estacaria de ferro. Mal tinham acabado de chegar, caiu a noite. Nos trópicos a noite cai subitamente, como um fio-de-prumo, logo o último raio de sol desaparece, sem o repousante intervalo do crepúsculo.
E Schweitzer, assomando à varanda, sentiu-se envolvido por uma colossal sinfonia de grilos, entrecortada aqui e ali por uns ruídos surdos e ritmados do tanta que anunciava a toda a imensa floresta a chegada do Oganga, o feiticeiro branco.

A África chega aos bandos

Ao reentrar no quarto, Alberto viu uma sombra impressionante que descia ao longo da parede: era uma aranha peluda e enorme. Espantado, Schweitzer agarra num pau, a única coisa que tinha à mão, e descarrega fortes pancadas na parede. Quando Hélène apareceu, preocupada com as pancadas, Alberto enxuga o suor após a sua primeira “caçada” africana.
Às seis da manhã foram acordados pelo toque do sino da missão e pelo brilho ardente do sol. Desceram apressados para verem “o barracão de chapas” que seria o núcleo inicial do hospital. Não deram com ele.
Os missionários explicaram-lhes que, infelizmente, tinha faltado a mão-de-obra. A única coisa disponível era um velho galinheiro de tecto esburacado e com as paredes todas sujas. Schweitzer pediu vassouras e um balde de cal, e ele mais Hélène limparam como puderam aquele galinheiro, durante três horas de trabalho fatigante.
Depois, exaustos, puseram-se a descansar à sombra de uma palmeira, quando, pelas dez horas, ouviram na direcção do rio um barulho de vozes que aumentava cada vez mais. Levantando-se, Alberto viu no rio um grande número de canoas apinhadas de indígenas, e na colina um formigueiro de gente: pessoas coxeando, amparando-se umas às outras, doentes transportados nos braços. Desta vez Schweitzer perdeu a paciência:
— Assim não! É impossível! Eu disse que nas três primeiras semanas não atendia ninguém, a não ser casos urgentes! Ainda não chegaram os caixotes dos medicamentos, e aqui nem uma palhota existe para atendimento dos doentes!
Na verdade a estação missionária tinha avisado que o Oganga branco nas primeiras três semanas não atendia ninguém a não ser os casos urgentes. Mas os que naquele momento subiam a colina eram todos infelizmente casos urgentíssimos. Em poucos minutos Alberto e Hélène viram-se cercados por uma multidão de pobres seres humanos atingidos pelas mais variadas doenças: lepra, malária, doença do sono, febre amarela, úlceras tropicais, pneumonias, hérnias inguinais... Eram acompanhados de familiares e amigos. Impossível compreender uma só palavra no meio de toda aquela confusão e gritaria, mas em cada rosto Alberto leu aquele terror que, num dia distante, descobrira na “cabeça do jovem negro” de Bartholdy.
O doutor Schweitzer tratou primeiro de separar os doentes contagiosos dos outros. Depois começou a observá-los ali mesmo, ao ar livre, diante do velho galinheiro e sob um sol de fogo. Hélène correu a casa e voltou com a mala de pronto socorro que tinham trazido na bagagem em vista de eventuais casos de emergência. Utilizando ligaduras, álcool e outros desinfectantes, trabalharam lado a lado durante todo dia.
Quando tombou a noite, e começaram a zumbir por todo o lado os terríveis mosquitos da malária e da febre amarela, ainda eles lá estavam a fazer pensos, a desinfectar e a ligar. Tiveram de interromper, mortos de cansaço, o corpo alagado em suor. E no entanto a fila dos “casos urgentes” era agora maior que da parte da manhã. E aqueles pobres infelizes acocoraram-se na terra nua: vítimas de variadas doenças teriam de passar a noite lado a lado, esperando a sua vez para serem tratados pelo oganga branco, se a morte os não surpreendesse. Os dez dias que se seguiram foram um pesadelo para o doutor Schweitzer.Todos os medicamentos de que a estação missionária dispunha ficaram esgotados. E os doentes, alguns gravíssimos, aumentavam a olhos vistos. Parecia ao jovem médico que todas as florestas da África vinham despejar as suas vítimas ali na esplanada frente ao “galinheiro”. Mais tarde viria a saber que os feiticeiros lhe tinham enviado naqueles dias todos os doentes, por eles julgados incuráveis, para o desencorajar.
Enquanto espera a chegada dos seus setenta caixotes de medicamentos, que estão a ser transportados rio acima, Schweitzer realiza verdadeiros milagres de cirurgia. Apesar de tudo, alguns doentes morrem sob os seus olhos. Com esses nada a fazer. Aumentava o seu pesadelo ao saber que os indígenas têm um medo terrível dos mortos. Alberto e Hélène vêem-se obrigados a pegar nas pás para enterrar os cadáveres.
Mas na noite de 26 para 27 de Abril foram acordados por um silvo prolongado. “Era o silvo da ressurreição — escreve Alberto. — O vapor carrega com os meus setenta caixotes estava chegar. Terminara o grande pesadelo”
Numas estantes rústicas, o oganga branco lá foi alinhando a aparelhagem cirúrgica e empilhando as reservas médicas. O caixote número setenta era maior de todos: continha o piano que os amigos de Paris lhe tinham oferecido.


Uma barreira de olhos brancos

Naquele dia Schweitzer pôde fazer sua primeira operação de vulto, debato do tecto do velho galinheiro preparado c melhor maneira possível. Um negro robusto, de uns trinta anos, tinha sido transportado pelos familiares de uma distância de mais de 150 quilómetros. Uma viagem horrível. A cada passo, negro soltava-se das mãos dos que amparavam e rebolava-se no chão, gritando desesperadamente. Tinha uma hérnia dupla prestes a degenerar em peritonite. Schweitzer conta assim o caso: “Logo que o pobre doente chegou ao hospital, coloquei-lhe a mão na testa e disse-lhe:
— Não tenhas medo. Agora vais dormir, e quando acordares já não vais sentir nada. Dei-lhe uma injecção de omnipon, chamei a minha mulher e preparei tudo para a operação. Ao retalhar aquele ventre inchado e duro, à minha volta havia um silêncio de morte. Uma barreira de olhos brancos, vindos da penumbra da cabana, seguiam todos os meus gestos. Lia neles uma decisão firme: se com o meu bisturi viesse a causar a morte ao negro também seria liquidado. Mas a operação correu bem. Depois, observei o acordar daquele homem. Recobrados os sentidos, olhou em volta e gritou com entusiasmo:
— Já não tenho nada! Já não tenho nada!
A sua mão procurou a minha e não a largou mais. Agora a barreira de olhos brancos olhava-me com veneração, e naquelas bocas rolava um alegre murmúrio. O sol africano brilhava entre os arbustos do café, enquanto nós ambos, o homem branco e o homem negro, um ao lado do outro, compreendíamos plenamente o significado das palavras: somos todos irmãos”.
Ao cair da noite, o tantã da floresta transmitiu aos quatro ventos um boletim médico triunfal: “O oganga branco tem uma faca que cura todos os males... O oganga branco é poderoso...”. Naquela noite, pela primeira vez, com o ressoar do tantã, ecoaram pela floresta os sublimes acordes da “tocata e fuga em ré menor” de Bach. Alberto Schweitzer, um dos maiores organistas do mundo, dava o seu primeiro concerto na floresta.


Os canibais à porta de casa

Entre os doentes sem conta que Schweitzer curou nos dias seguintes, estava Joseph Azvawami, um negro sensível e inteligente da tribo dos Galaos. Uma malária crónica tinha-o reduzido a pele e ossos. Schweitzer fez o impossível para o salvar. Acompanhado por Hélène, passou noites inteiras à sua cabeceira. E Joseph ficou-lhes muito reconhecido. Ele tinha já trabalhado às ordens de alguns comerciantes franceses, e conhecia um pouco a sua língua. Depois de curado ficou com Schweitzer, e depressa se tornou o seu valioso intérprete.
Através dele o doutor veio a saber coisas da maior utilidade para a sua missão. A tribo dos Galaos, pacata e pacífica, ocupava no passado toda a região do rio Ogové. Mas depois, vinda do interior, tinha aparecido a tribo dos Panins, ferozes e canibais, provocando guerras e saques. Agora as duas tribos viviam em territórios fronteiriços, e a missão estava na linha de fronteira. A pouca distância da casa de Schweitzer, os cambais continuavam a alimentar-se de carne humana. Durante meses de trabalho extenuante e contínuo, Schweitzer combateu contra todas as doenças e sofrimentos. Mas havia uma força que o ultrapassava, uma força que dominava muitíssimos negros e os trazia fora de si: essa força era o medo. E o medo, vinha do tabu.
“Na zona do rio Ogové — escreve Joseph Golomb — mesmo entre as tribos que praticavam o canibalismo, era tabu tapar com terra um buraco, pisar um carreiro de formigas, tocar num camaleão e fazer mil outras coisas. Além disso, havia inúmeros tabus pessoais para homens, mulheres e crianças. A uma criança dizia-se que para ela era tabu contar os dedos. Um rapaz não devia permitir que ninguém lhe tocasse no ombro direito. Uma mulher, para quem era tabu uma vassoura, limpava a casa com as mãos nuas. A um rapaz, que frequentava desde há pouco a escola da missão, tinham dito que morreria se comesse qualquer alimento tirado de um recipiente em que tivessem cozido grama. Em ar de troça, alguns companheiros disseram-lhe (e não era verdade) que tinham acabado de comer peixe cozido numa panela contaminada pela erva impura. O efeito foi terrífico mesmo para os autores da brincadeira. O pobre rapaz começou a contorcer-se com as cãibras e morreu no meio de dores atrozes.
Obcecados com os mais variados e estranhos tabus, muitos indígenas enlouqueciam. Então os familiares ou os deitavam ao rio, ligados de pés e mãos, ou os abandonavam no meio da floresta, onde os seus gritos frenéticos se misturavam com os rugidos de feras.


Os feiticeiros, senhores da floresta

“Mas a maior fonte de terror para os indígenas — escreve Golomb — eram os feiticeiros. Nas aldeias eram senhores da vida e da morte. Incorrer na sua cólera significava estar condenado à morte, porque o feiticeiro tinha à sua disposição infinitos meios de matar um inimigo. Por vezes fingia-se amigo da sua vítima, para mais fácil e eficazmente poder utilizar o veneno. Outras vezes servia-se de algum débil mental, metendo-lhe na cabeça que a sua vida corria perigo enquanto não liquidasse determinada pessoa”.
A arma do veneno era usada com a perícia de criminosos profissionais: administravam-no por turnos aos habitantes das aldeias de maneira a terem sempre doentes para curar “miraculosamente”. Aos pobres diabos condenados à morte aplicavam-no em doses fortíssimas, anunciando de antemão que os deuses estavam para desafogar a sua cólera sobre o desgraçado.
Tinham passado dois meses desde que chegara, quando Schweitzer foi solicitado a ir ao rio: estava lá uma piroga com um moribundo.
Acompanhavam-no como de costume familiares e amigos. Mas o doutor viu também, ao fundo da piroga, um rapazito atado, com os olhos aterrorizados. Põe-se a observar o doente, ali mesmo à beira do rio, e encarrega alguém de ir chamar Joseph. A infecção estava muita adiantada: não havia nada a fazer. Enquanto Joseph ia traduzindo aos indígenas as palavras do doutor, o rapazito começou a gritar cheio de medo. Schweitzer exigiu com energia que o soltassem, e perguntando a Joseph o que é que se estava a passar. Depois de uma violenta troca de palavras com os familiares, o intérprete disse ao doutor que aquele rapaz tinha sido designado pelo feiticeiro como responsável de o “espírito mau” se ter apoderado do moribundo. Se o doente morresse, o rapaz teria de pagar com a sua vida. Schweitzer sabia aliás que procurar convencer os indígenas era tempo perdido. Limitou-se pois a dizer àquela gente que, se acontecesse alguma coisa ao rapaz, os denunciaria ao governador da província como homicidas.
Entretanto Schweitzer foi chamado com urgência à “secção cirúrgica” e teve de se retirar. Quando voltou, chamado pelos gritos de Joseph, a piroga estava a afastar-se a toda a velocidade. A bordo, o rapaz ligado de pés e mãos gritava desesperado. Schweitzer deu algumas ordens secas e decididas. Em poucos minutos duas pirogas da missão estavam prontas a perseguir os fugitivos. Mas era tarde demais. Metendo por um braço secundário do rio, a piroga com o rapaz desapareceu da vista deles, num labirinto intricado de trepadeiras e plantas aquáticas.


A hora da amargura

Naquela noite Schweitzer tinha o coração cheio de amargura. Nisto Hélène chama-o em voz baixa e aponta para a janela. No céu havia um luar pálido, mas a claridade permitia descortinar umas sombras rastejando silenciosamente para fora da floresta e dirigindo-se para a “secção cirúrgica”. Eram os canibais em busca de carne humana. O doutor foi ao armeiro, pegou na espingarda, abriu a porta com um pontapé e gritando disparou para o ar um carregador inteiro. As sombras desapareceram rapidamente. Voltando para o quarto, Schweitzer tremia dos pés à cabeça, e a testa estava inundada de suor. Compreendia agora perfeitamente o que em tempos lhe dissera com tristeza um velho chefe dos Pauins:
— A nossa terra devora os seus filhos.
Naquela noite o pesar, a repugnância, o desânimo atingiram profundamente a alma de Schweitzer. Não conseguiu pregar olho. Revia um a um os anos de vida que tinha passado na Europa, e perguntava-se com amargura:
— Terei feito bem deixar tudo? Não serei um iludido?
Mas naquela noite amarga, Alberto Schweitzer sentiu Hélène junto de si.
— A vida é muito dura, Alberto — disse-lhe ela enquanto lá fora os uivos das feras rasgavam o silêncio. — Mas não foi para isto que viemos? Os indígenas são perigosos, mentirosos e ladrões, e assassinos às vezes. Mas quem os fez chegar a este estado? A floresta, os feiticeiros, os negociantes de escravos. De certeza que não foi a má vontade. E se nós nos vamos embora, se os abandonamos, também Joseph, também os melhores voltam a ser ladrões e assassinos. Porque só assim é possível sobreviver na selva do Gabão. “Quem perder a vida por meu amor, há-de encontrá-la”. Recordas quem disse estas palavras, Alberto?
Às seis da manhã, Schweitzer estava, como de costume, na “secção cirúrgica”. A seu lado, silenciosa e sorridente, Hélène chegava-lhe a seringa, o bisturi, as gazes. Lá fora, a fila dos novos doentes esperaya cheia de esperança os “milagres” do oganga branco, que não os abandonaria até a morte.
No dia 15 de cada mês fazia-se ouvir no rio a sirene do Alembe. Schweitzer largava os ferros de cirurgia e descia a buscar o correio. Chegavam sempre dezenas de cartas dos seus amigos da Europa, juntamente com medicamentos, víveres e dinheiro para o hospital. Depois de as ler, passava duas noites à mesa para responder e agradecer. Quando, dois dias depois, o Alembe partia de regresso ao mar, Schweitzer subia a bordo para entregar o seu maço de cartas e ter dois dedos de conversa com o capitão, um dos poucos europeus que conseguia ver.

A guerra anda no ar

Nos primeiros meses de 1914, Schweitzer começa a ler, nas cartas que lhe chegavam, notícias alarmantes. Alemanha, França e Inglaterra estavam a armar-se a toda a pressa. Nos estaleiros fabricavam-se colossais vasos de guerra. Eram instalados nas fronteiras intermináveis filas de canhões e grandes contingentes de tropas. Também nas conversas com o capitão do Alembe, Schweitzer começa a notar um certo mal-estar, como que uma expectativa angustiada. Aproximava-se o dia em que a grande avalanche da guerra iria abater-se sobre a Europa. Schweitzer escreveu por aqueles dias no seu diário: “Se a guerra for declarada, a selva do Gabão, comparada com a Europa, será um paraíso. Aqui o homicídio é uma questão de homem para homem. Numa guerra europeia o massacre será em moldes modernos, automático. Atingirá tão larga escala que se terá a impressão de que todas as outras guerras da história foram quase inofensivas e antiquadas...”. As suas previsões eram infelizmente certeiras.
Em Abril, Schweitzer traçou o seu plano de acção. Ele e a sua mulher, nascidos na Alsácia, eram cidadãos alemães. Não havia dúvida de que em caso de guerra as autoridades do Gabão os internariam num campo de concentração. No pouco tempo que faltava, era necessário dar o máximo desenvolvimento ao hospital. Só diante de um hospital bem equipado as autoridades hesitariam em mandá-lo encerrar. Alberto e Hélène, com a ajuda dos missionários e de operários recrutados entre os que tinham sido curados pelo doutor, trabalhavam até ao limite das suas forças. Foi ganho à floresta um pedaço de terreno e nele construído um barracão de chapas. Mudou-se para ali o bloco operatório. Depois Schweitzer desenhou na terra nua, com um pau afiado, dezasseis rectângulos: o lugar onde ficariam as primeiras dezasseis camas para os doentes, quando se construísse o segundo barracão. Mas já naquela tarde, antes que este se levantasse, dezasseis doentes vieram ocupar aqueles rectângulos de terra.
Um dia de Agosto, Schweitzer tinha subido o rio numa piroga, para ir tratar os habitantes atingidos pela disenteria. No regresso, Joseph esperava por ele com um bilhete na mão e com o rosto desolado. O bilhete era do capitão do barco. Dizia assim: “Rebentou a guerra na Europa. Recebi ordens de colocar o barco à disposição das autoridades. Por isso não sei quando poderemos voltar a ver-nos. Boa sorte”.
Na mesma tarde chegou a Lambaréné um grupo de indígenas armados. Ordenaram a Schweitzer para suspender todos os contactos com brancos e negros. As autoridades centrais em breve mandariam novas instruções.
Com uma tristeza infinita, Schweitzer juntou os doentes e disse-lhes que tinham de voltar para suas casas. Então, antes que Schweitzer acrescentasse outras palavras, deu-se uma cena repentina. Todos os doentes se atiraram ao mesmo tempo contra os indígenas armados. Encheram-nos de escarros e insultos. Estavam a chegar a vias de facto (e já os militares tinham apontado as armas) quando Schweitzer, Hélène e Joseph intervieram para os deter.

Seladas as portas do hospital

Naquela noite Schweitzer fechou os dois pavilhões e os militares selaram-nos com os selos do governo.
Mal o tantã acabara de lançar na floresta a notícia da guerra, do encerramento do hospital e da prisão do oganga branco, muitos indígenas curados por Schweitzer acorreram incrédulos. Uma mulher perguntou-lhe:
— Tu disseste-nos que os brancos adoram Cristo, e que Cristo pregou o amor. Porque é que então os brancos se guerreiam?
Schweitzer não soube responder. O velho chefe canibal da tribo dos Pauins, que um dia lhe tinha dito “a nossa terra devora os seus filhos”, não conseguia acreditar na guerra.
— Então os brancos dispararão uns contra os outros?
— Infelizmente, sim.
— E haverá muitos mortos?
— Penso que sim.
O velho canibal abanou a cabeça:
— Mas porque não se reúnem e não discutem para porem fim à guerra? Os europeus não comem os inimigos mortos, disseste-me tu. Mas então matam-se por crueldade. Eu julgava que os europeus tinham melhores sentimentos.
Antes de findar o mês, também os indígenas do Gabão foram chamados às armas pelo exército francês. Schweitzer, com os missionários, desceu até ao rio para se despedir de alguns alistados que partiam para a Europa. Um mês antes aqueles rapazolas não sabiam sequer pegar numa espingarda. Não sabiam até este momento que havia uma nação chamada Alemanha. No entanto, dentro de trinta dias, seriam empurrados para as trincheiras, nas fronteiras da França, e receberiam ordens para disparar contra o inimigo completamente desconhecido. E muitos não mais voltariam. “Quem são os selvagens? — intrigava-se Schweitzer naquele momento. — Estes homens que vivem na selva e matam por necessidade, ou aqueles que organizam um massacre de proporções apocalípticas e perfeitamente inúteis no centro da Europa?
“A multidão tinha-se dispersado — escreveu Schweitzer, — mas na margem do rio uma mulher já idosa, que tinha visto partir o filho, estava acocorada no chão em silêncio. Tomei-a pela mão. Tentei consolá-la. Ela continuou a chorar como se me não tivesse ouvido. Então, vencido pela amargura, também chorei junto daquela mãe, na margem do rio”.
Depois chegou a ordem: “Todos os cidadãos alemães residentes no Gabão devem ser embarcados e transportados para a França”. Antes de partir Schweitzer viu por entre o capim um par de cobras maravilhosamente coloridas, com a ninhada recém-nascida ali perto. A pouca distância, absolutamente estranhas ao que se passava, brincavam algumas crianças negras. Schweitzer pede uma espingarda, e mata os répteis com dois tiros. As crianças, espantadas com os tiros, fogem aos gritos. Do convés do pequeno vapor, Schweitzer despediu-se de Lambaréné. Deixava os seus negros, aquelas crianças: sem defesa contra tantos perigos.
Mas voltaria, custasse o que custasse.
Os Schweitzer foram internados num campo de concentração junto aos Pirinéus. Depois, numa troca de prisioneiros, voltaram à Alemanha passando entre mortos e escombros. Quando, a 11 de Novembro de 1918, chegou finalmente a paz, a Europa fazia lembrar um imenso cemitério. Com a paz, chegaram de Lambaréné as primeiras notícias. Os missionários escreviam a Schweitzer cartas lancinantes: “O hospital está em ruínas... Esta gente precisa de vós... Doutor, sentimos terrivelmente a vossa falta. Na região do Ogové, num raio de cem milhas, não existe um só médico. Tudo recaiu nas mãos dos feiticeiros...”.

Respeitai a vida

Schweitzer estava decidido a voltar, mas também na Europa havia quem precisasse dele. Hélène adoecera gravemente. No dia 14 de Janeiro nasce a sua filha, Rhena. Mas os meios mais necessitados de ajuda pareciam-lhe ser os seus irmãos europeus. Profundamente traumatizados pela guerra, eles tinham necessidade de ouvir uma palavra de esperança, como que uma palavra de ordem que lhes permitisse cobrar ânimo e construir de novo. E Schweitzer parecia-lhe ter descoberto esta palavra de ordem. Junto à floresta compreendera que na raiz de qualquer civilização tinha de estar o mandamento: “respeitar a vida”. Naqueles difíceis anos do pós-guerra escreveu o livro Decadência e restauração da civilização.
Programara entretanto uma longa série de concertos de órgão e de conferências, na Suíça, Dinamarca, Suécia, Espanha, Alemanha, França. A Europa ouviu pela primeira vez, juntamente com a música de Bach, o nome de Lambaréné, e as aventuras do oganga branco na margem do Ogové despeitam imenso entusiasmo em muitos jovens.
A 21 de Fevereiro de 1924, em Bordéus, Schweitzer embarca no vapor Orestes de regresso ao Gabão. Hélène não o acompanha: não estava ainda refeita, e tinha de pensar na pequenina Rhena. Mas ia com ele um jovem estudante de medicina, Noèl Gillespie, o primeiro jovem europeu que aceitara o convite de condividir com Schweitzer as fadigas de Lambaréné.
Era a vigília de Páscoa quando o Alembe atracou próximo da missão de Lambaréné. Schweitzer viu centenas de negros que das margens agitavam ramos de palmeira e flores. Mas o seu olhar correu veloz para o “seu” hospital. E ao vê-lo ficou desolado: o terreno desbravado, tinha sido novamente engolido pela floresta. Os barracões, destelhados, tinham sido invadidos pela vegetação tropical. Nem sequer as paredes de chapas tinham resistido à força da floresta. Schweitzer (contava agora cinquenta anos) disse uma só palavra: “temos de recomeçar”.
O tantã esteve a transmitir a notícia do regresso do oganga branco durante o dia de Páscoa. E na segunda-feira repetiram-se cenas já recuadas no tempo: canoas apinhadas no rio, o fervilhar de gente colina acima, doentes levados em padiolas ou nos braços, filas intermináveis de “casos urgentes”.

Os homens-leopardos

O começo, desta vez, ficou assinalado por um luto e por uma descoberta macabra. Enquanto Gillespie trabalhava freneticamente durante toda a noite, Schweitzer velou um negro doente de coração, tentando em vão salvá-lo. Na madrugada de terça-feira, o negro morria. Enquanto o cadáver era transportado para fora, uma menina começou a gritar desesperadamente, e fugiu em direcção à missão. A quem procurava acalmá-la a menina disse, com os olhos esbogalhados de terror, que o oganga branco era um homem-leopardo: no seu quarto tinha entrado um homem vivo e tinha saído um homem morto.
— Porque é que deixam vir um homem-leopardo matar os pobres negros? — continuava a perguntar entre soluços aquela menina.
Schweitzer, impressionado, perguntou:
— Mas quem são esses homens-leopardos?
A resposta deixou-o atónito. Durante os anos da sua ausência, tinha-se espalhado no Gabão como uma mancha de óleo uma associação secreta de selvagens, que circulavam munidos de garras de leopardo. Com estas garras esganavam as suas vítimas. A seita conseguia penetrar entre os negros através da astúcia: convidavam um indígena a beber na sua companhia, depois diziam-lhe que lhe tinham feito beber sangue humano fervido numa caveira. Nesta altura, o negro tinha de escolher: ou entrar na seita ou ser degolado. Vencidas pelo terror, as vítimas cediam quase sempre. A primeira incumbência que lhes era imposta era atrair um seu parente para a floresta, onde a seita estava emboscada para o matar. Com aquele delito o novo adepto ficava automaticamente fora da lei. Se fosse denunciado às autoridades era condenado à morte. Não tinha, por conseguinte, outro remédio senão entrar na seita e entregar-se definitivamente ao banditismo.
A única maneira de vencer este mal que vinha juntar-se a tantos outros, era arrancar os negros à ignorância e à miséria.
Schweitzer e Gillespie trabalhavam como médicos, pedreiros e lenhadores. E bem depressa o hospital foi restaurado. Dois meses depois, chegou da Inglaterra Mathilde Kottman, enfermeira voluntária. Uma mulher alta, robusta, enérgica e sorridente. Tinha ouvido falar do hospital de Lambaréné, e vinha dar uma ajuda. Schweitzer anotou no seu diário: “Não acreditava que uma mulher aguentasse por muito tempo no nosso hospital. Mas, decorrida uma semana, começámos a notar que os candeeiros de petróleo estavam sempre em ordem, que a água fervida nunca faltava na secção cirúrgica, que a roupa limpa enchia as prateleiras, que os ovos das nossas galinhas eram recolhidos antes que alguém os roubasse e começavam a alimentar convenientemente os nossos doentes. A continuar assim, nunca mais se daria o caso de encontrar as camas feitas com toalhas em vez de lençóis...”.
Depois de Mathilde apareceu Joseph, que deixou o negócio de madeiras para retomar o seu lugar junto do oganga branco, com o título de “primeiro assistente do doutor de Lambaréné”. Poucos dias depois Schweitzer recebeu a mais agradável notícia que lhe podiam dar: tinha partido da Europa um médico que vinha trabalhar com ele. Ao entrar no cais de desembarque para lhe dar as boas-vindas, Schweitzer viu no convés do navio um jovem, com cara de adolescente, que lhe gritou logo:
— Agora pode descansar, doutor! Eu tratarei de tudo!
Era o doutor Vítor Nessmann, que não tardou a revelar-se um homem afável, inteligente e enérgico. Naquela tarde, escreveu Schweitzer no seu diário: “É uma bênção poder finalmente confessar a mim próprio que de facto me encontro cansado!”
Depois foi a vez de a doce Hélène voltar a Lambaréné, acompanhada de Rhena que se tinha tornado uma rapariguinha cheia de vida e de força. E chegou o doutor Mark Lauterburg, “um homem esbelto com a elegância e a desenvoltura dos oficiais de cavalaria”. Chegou juntamente com uma esplêndida oferta dos “Amigos de Lambaréné” da Suécia: uma lancha a motor com nove metros de comprimento, de grande solidez e brilho, apta para a navegação fluvial e dotada de um poderoso motor.

Alastra a epidemia
Com a ajuda de Lauterburg e daquela potente lancha, Schweitzer enfrentou a crise mais grave de quantas terão atingido a região do Ogové: uma larga e violenta epidemia de disenteria que ameaçou despovoar completamente aquelas terras. Foram dias de horror em que uma ou outra vez a coragem de Schweitzer pareceu vacilar. “Estávamos todos cansados e desmoralizados — escreve Schweitzer. — Em vão tentávamos deter o contágio avassalador... No hospital, alguns doentes, convalescendo da operação, foram atacados pela disenteria e não conseguimos salvá-los...”.
A coisa mais difícil era convencer os negros a precaver-se do contágio, a na© tocar nos doentes, a não se servir dos recipientes por onde eles comiam.
Cansado e desesperado, Schweitzer desabafou um dia com amargura:
— Que idiota que eu fui, quando me decidi a vir para aqui cuidar destes selvagens!
E Joseph, que estava ao pé dele, repondeu:
— Na terra, talvez seja idiota. Mas no céu, não.
Atrás da epidemia veio a fome. Os homens mais fortes tinham morrido com a epidemia. Muitas famílias, muitos órfãos, morriam literalmente de fome nas aldeias da floresta. Schweitzer pediu enormes quantidades de mantimentos às autoridades, aos seus amigos da Europa: “É um povo inteiro que está a morrer por não ter um punhado de arroz. É preciso ajudá-lo imediatamente, sem perder um minuto de tempo”. A sua lancha carregada de víveres salvou naqueles dias milhares de pessoas sumidas nos cantos mais escondidos da selva.
Mas de novo o céu se obscureceu sobre a Europa. As notícias que chegavam vinham carregadas de angústia. Os “homens-leopardos” não os havia só no Gabão. Na Alemanha Hitler, o louco e feroz ditador, tinha posto em pé de guerra o mais poderoso exército da história. Os seus carros armados e os seus canhões estavam prontos a desencadear a segunda e terrível guerra mundial.

A segunda guerra mundial
Em Setembro de 1939 chegou a tristíssima notícia: os exércitos de Hitler tinham invadido a Polónia. O mundo estava de novo em guerra.
Agora que a Alsácia pertencia à França, Schweitzer não foi considerado estrangeiro, e o hospital pôde continuar aberto. Mas bem depressa os medicamentos começaram a escassear, e o fornecimento dos víveres ficou suspenso. Os submarinos alemães dominavam os mares, e Lambaréné ficou isolada do resto do mundo. A lancha Brazza que transportava a bordo uma grande quantidade de víveres e medicamentos para o hospital de Schweitzer foi torpeada e afundou-se. Entretanto chegavam notícias apocalípticas: cidades que ardiam sob os bombardeamentos aéreos, campos onde eram exterminados milhões de pessoas, armas cada vez mais sofisticadas que provocavam nódoas de horror na humanidade.
No dia em que Schweitzer completava setenta anos, no dia 14 de Janeiro de 1945, Londres como que desaparecia sob a chuva de bombas-foguetes de Hitler, as chamadas VI e as V2. Em Agosto daquele ano, o velho de Lambaréné foi abalado por uma notícia horrorosa: duas cidades japonesas tinham sido varridas do mapa por uma nova arma e terrível, a bomba atómica. “Que valem os nossos pobres esforços — escreveu nessa altura — de que serve ter vindo salvar algum milhar de negros, quando cidades inteiras, populosas, civilizadas desapareceram como se por cima delas passasse uma esponja?”.

O “Nobel” da paz
Em 1948, Schweitzer voltou à Europa. Passou mais uma vez pelas cidades reduzidas a escombros, por entre os sobreviventes destroçados. Tocou Bach “que é um acto de oração e adoração”, falou de Lambaréné e do “respeito pela vida”. E foi então que o mundo “descobriu” Schweitzer. Os homens que durante cinco anos tinham pensado em suicidar-se, ficaram sacudidos e encantados diante daquele velho que no mesmo espaço de tempo tinha pensado em curar e salvar vidas humanas numa terra desconhecida e longínqua. A Universidade americana de Harvard convida-o para um ciclo de conferências, e no final Albert Einstein define-o “o maior dos homens vivos”. Em 1949, a célebre revista americana “Life”, dedicava-lhe a primeira capa do ano, considerando-o “o maior homem do mundo”. Em 1952 foi-lhe atribuído o Nobel da Paz. Daquele dia em diante, são incontáveis as condecorações, os prémios, os doutoramentos “honoris causa” que Schweitzer recebe. Mas o que mais o conforta é o aparecimento contínuo de jovens europeus e americanos que vêm a oferecer dois, três, cinco anos da sua vida aos seus leprosos e aos seus doentes. Agora sentia-se velho. Deixara de operar. Mas passava pelos barracões, que se tinham multiplicado, entre os 3.500 doentes que habitavam o seu hospital em aumento crescente, a sorrir, a dizer uma palavra de conforto, a fazer uma carícia. Passava horas esquecidas junto dos animais que circulavam em plena liberdade nas cercanias do hospital. Os pequenos antílopes empurravam-no delicadamente com o focinho, reclamando as suas carícias. Os gatos saltavam para cima da sua secretária, farejando o tinteiro e os maços de cartas. Um velho pelicano saudava-o com guinchos estridentes, e esperava pelas seis da tarde para se pôr de guarda à sua porta.
Agora Lambaréné era conhecida em todo o mundo; tornara-se por assim dizer uma meta turística. Aqueles que desembarcavam dos jactos surpersónicos, no aeroporto construído nas vizinhanças, vinham ver um patriarca, que tinha vivido unicamente para o seu próximo mais pobre e mais desamparado.
Morreu assim a 4 de Setembro de 1965, entre os seus doentes, as suas crianças, os seus animais. Schweitzer tinha então noventa anos. E tinha ensinado os homens a ter estima pelos outros.

4 comentários:

rogério disse...

Lí alguns livros de Albert Schweitzer, como "Em Busca do Jesus Histórico" e "O Misticismo de Paulo Apóstolo", É incrível como um músico e médico completos pode ser também um teólogo tão sensível e refinado; é um grande Cristão, não imaginam o que ele escreveu...

Susan disse...

Desde muito jovem sou fascinada com Schweitzer, já li muito sobre ele e sua obra.Tenho um CD de música sacra, executada por ele em órgão, um desses achados que se faz uma vez na vida, numa loja na Austria.Pessoas como ele deveriam ser eternas no mundo.

fatoquinha ramos disse...

Pelo amos de deus Suzan, me arruma uma cópia desse CD.,deve ser maravilhoso.

Natali Brust disse...

Curvo-me diante do Deus Todo Poderoso, que levantou homens como este para fechar a boca de incrédulos como Richard Dawkins. Glória ao Deus eterno, que usa a quem quer, quando quer e onde quer. Aleluia!